São Paulo, sexta-feira, 13 de setembro de 1996
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Babilônia revisitada: eu, ela e os outros

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

O título lembra, intencionalmente, a novela de Scott Fitzgerald: a maldição que pesa sobre as cidades que se tornaram cenários do prazer, da riqueza e do poder. Babilônia é uma metáfora. Mas ela existiu -e como! Foi a mais brilhante metrópole de seu tempo, sede de um império que dominava as rotas comerciais do Oriente Médio e escravizava reinos e povos vizinhos.
Nabucodonosor, que ali reinou durante 42 anos (604-562 a.C.), sitiou Jerusalém, espoliou a região, estuprou mulheres, assassinou crianças, incendiou o templo e promoveu o êxodo do povo judeu, levando-o para um cativeiro que durou 49 anos (587-538 a.C.).
Babilônia ficava entre o Tigre e o Eufrates, na Mesopotâmia, a 100 quilômetros da atual Bagdá de Saddam Hussein, que volta e meia sacaneia os americanos e paga por isso. Ao contrário da Bagdá de hoje, que pode ser destruída por meia dúzia daqueles foguetes com que o presidente Clinton pretende se reeleger, Babilônia era inexpugnável.
Contra ela não se erguiam armas, erguiam-se consciências. A mais lúcida e virulenta de todas foi a do profeta Jeremias -aquele mesmo Jeremias que Renan considerou o maior escritor bíblico e em quem Robert M. Seltzer descobre "o primeiro homem da história que se pode conhecer como indivíduo". Jeremias fez da própria personalidade, de sua experiência pessoal, a matéria de memória, o núcleo de sua obra.
Temos hoje uma noção vulgar do ofício de profeta. Ele não é um mago, um adivinho, nem mesmo um intuitivo. O verdadeiro profeta alcança a visão do futuro pela ampla consciência do presente. Daí que os grandes profetas de todos os tempos foram panfletários do dia-a-dia.
Ele previu a destruição de Babilônia, não apenas a Babilônia mesopotâmica, a poderosa cidade-estado, a fortaleza de Nabucodonosor, mas de todas as Babilônias que se ergueram ao longo da história.
Foi uma espécie de ensaio-geral para a grande diáspora dos judeus. À margem dos rios da Babilônia, os judeus penduravam seus alaúdes no ramo dos salgueiros e choravam -o cativeiro produziria pelo menos dois grandes hinos: o belo salmo 137 ("Junto aos rio da Babilônia nos assentávamos e chorávamos, lembrando de ti, oh Sião), e o esplêndido coro de Verdi para sua ópera "Nabuco", cantado até hoje por aqueles que lutam contra a opressão: "Va pensiero sulláli dorate".
Mas fiquemos com Jeremias -e ficamos bem: "Trema toda a terra e se turbe, porque está pronto a cumprir-se a ameaça do Senhor contra Babilônia, de fazer dela um deserto inabitável. Babilônia será reduzida a um montão de ruínas, a covil de chacais, será objeto de horror e escárnio".
Jeremias era competente. Entendia do riscado. Contudo, se vivo fosse neste final de século, ficaria sem entender o que agora está se passando na "meretriz do Eufrates" -bela imagem que foi usada para designar a antiga Babilônia.
A grande cólera de Jeremias contra Nabucodonosor, e, principalmente, contra a orgulhosa cidade, tinha motivo político na aparência, mas religioso na substância: ali não se adorava o Deus único, o Deus de Jeremias, de Abraão e de toda a sua descendência.
Um certo caldeu nascido em Ur (vide qualquer problema de palavras cruzadas) saíra daquela região porque se recusava a adorar ídolos. E levou consigo todo o seu povo. Povo que, séculos depois, voltava agrilhoado, sob o jugo de Nabucodonosor, deixando para trás as ruínas do magnífico templo no qual apreendera a ouvir: "Escuta, Israel, eu sou o Senhor, teu Deus".
Jeremias não entenderia como os monoteístas Bill Clinton e Saddam Hussein ficam se atirando mísseis de última geração por causa de uma espécie de deus que nem sequer é único, é apenas mais barato. O petróleo, como a liberdade, tem justificado todos os crimes. E Jeremias descobriria, para seu governo, que só era profeta em sua terra e em seu tempo.
Iniciei o artigo lembrando Scott Fitzgerald. Nada a ver com Saddam Hussein ou Bill Clinton. Muito menos com Nabucodonosor ou Jeremias. Tem a ver comigo mesmo. Toda vez que penso em Babilônia sinto sempre aquilo que um antigo bolero do Gregoria Barrios chamava de "frio en el alma".
Não foi na última vez que vi Paris, cidade que a geração perdida de Scott Fitzgerald considerava babilônica. Era um fim de caso, esgotáramos nosso tempo. Houve aquele momento em que, ao contrário de Adão e Eva, descobrimos que não estávamos nus. Combinamos ir embora, um para cada lado, mas antes voltaríamos a Paris para lembrar a primeira vez.
Fomos para o mesmo hotel, o mesmo apartamento, a mesma lareira, o mesmo papel de parede. Entramos sem pressa. Ela se aproximou da lareira, passou a mão no papel de parede. Ouvi-a dizer baixinho: "Babylone retrouvée".
Corte necessário para o acima citado Jeremias: "Babilônia era a taça de ouro que embriagava toda a terra. Aqueles que beberam do seu vinho ficaram enlouquecidos".

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