São Paulo, sábado, 14 de setembro de 1996
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Um futuro pior do que o passado?

RUBENS RICUPERO

O jornal "Le Monde" vem promovendo, há algumas semanas, um debate em torno da questão: "O progresso, uma idéia morta?" A inspiração proveio de artigo no qual o escritor americano William Pfaff perguntava: "E se não houvesse razão alguma para pensar que o futuro será melhor do que o presente, ou mais grave ainda, melhor do que o passado?"
A partir dessa dúvida, o jornal indagou de filósofos e escritores se seria preciso "renunciar a crer na idéia de progresso, a qual, de Bacon a Condorcet, animou, sucessivamente, o pensamento do Renascimento e a filosofia do Iluminismo, antes de inspirar, nos séculos 19 e 20, o liberalismo e o marxismo".
Mais interessante do que o conteúdo das respostas, em geral pouco satisfatórias, é o próprio fato de o debate ocorrer neste momento. Afinal, estaremos comemorando, dentro em pouco, sete anos da queda do Muro de Berlim, da decomposição da União Soviética e do fim do potencial confronto nuclear da Guerra Fria.
Quase tudo o que aconteceu desde então era suposto ter trazido ao mundo mais paz e prosperidade. No domínio político, assistimos a uma sucessão sem precedentes de êxitos improváveis: a superação das divisões ideológicas, a transição quase sempre pacífica dos regimes socialistas, o término do apartheid, o acordo de paz entre israelenses e palestinos, a pacificação da América Central, do Camboja, de Angola e de Moçambique.
Em matéria econômica, os resultados não foram menos espetaculares: a Rodada Uruguai tinha um "happy end", abrindo a perspectiva de bilhões de dólares em expansão do comércio e da economia, a crise da dívida encontrava aparente solução, a inflação deixava de ser ameaça iminente até na América Latina, a ampliação da União Européia e a moeda única prometiam nova era de crescimento na Europa, a conclusão do Nafta desempenhava igual papel na América do Norte, enquanto a China, a Índia, a Indonésia, países pobres cujas populações somadas superam 2 bilhões de pessoas, começavam a crescer aceleradamente. Coroando tudo, a globalização deveria assegurar, em tese, o advento de uma economia mundial mais eficiente e dinâmica.
Em condições normais, seria natural que um otimismo parecido com o da Exposição Universal de Paris, às portas do século 20, estivesse agora se manifestando no limiar de um milênio novo em folha.
Como entender, então, que, em vez de euforia, predomine o sentimento de inquietação, quando não de pessimismo?
Não disponho aqui do espaço para resumir as tentativas de responder à questão, que, no debate do "Le Monde", já se estende por uma dúzia de artigos.
As explicações principais se enquadram, talvez, nas seguintes categorias: 1) os problemas a resolver, embora menos graves, são os únicos que contam, pois os já resolvidos só interessam aos historiadores; 2) as soluções são, em geral, parciais e incompletas e, com frequência, criam problemas novos; 3) o genocídio na Bósnia e em Ruanda mostra que os avanços da humanização são precários e podem, a qualquer momento, ceder lugar à barbárie; 4) a fé na ciência perdeu muito de sua mágica após desastres como Chernobyl, a "vaca louca", o fracasso em encontrar a cura para a Aids ou o câncer, a volta de velhos flagelos como a tuberculose; 5) a economia globalizada trouxe, até agora, mais desemprego do que crescimento.
Como fundo do quadro, encontra-se uma razão mais geral: a angústia da privação do futuro. Muito mais que de presente, as pessoas vivem de futuro. A cada instante, estamos já pensando no que vamos fazer no instante seguinte, no fim-de-semana, nas próximas férias.
Se o futuro desaparece, com ele desaparece a razão de viver. A fé no futuro é o conteúdo da esperança. Hoje, porém, sofremos de um déficit de esperança.
Criar e transmitir as razões que fazem nascer a esperança é o papel dos grandes líderes. Onde, contudo, encontrar líderes equivalentes a Roosevelt, Churchill e De Gaulle, capazes de acender no coração de seus povos a chama da esperança nos momentos mais desesperados da depressão e da guerra?
A crise do conceito de globalização é um claro exemplo desse déficit de esperança. Na sua raiz está o erro de converter em ideologia simplificadora da realidade o que constitui um novo ciclo da história.
Como a Revolução Industrial, trata-se de um processo demorado, que se prolongará por décadas ou séculos e está apenas no seu início. Será complexo, produzindo ganhadores e perdedores. Resolverá alguns problemas e criará outros.
Dar-lhes sentido e conteúdo humanos depende não da força do destino, mas das escolhas da sociedade e da lucidez das lideranças. Quando estas, erroneamente, equiparam a globalização à negação da segurança do emprego, sem querer a transformam em fator de desumanização e de destruição da esperança. Pretender que as pessoas se resignem a um futuro de insegurança é tão absurdo quanto querer que elas aceitem uma vida sem amor. Pois afeto e segurança são as duas mais irredutíveis necessidades humanas.
Reconhecer essas necessidades e gerar condições para satisfazê-las é a única maneira de recriar o futuro e ter de novo razões para a esperança.
É preciso, assim, dar à pergunta sobre o futuro e o progresso a mesma resposta do Evangelho à interpelação da fé: "Eu creio, Senhor. Ajuda a minha incredulidade".

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