São Paulo, sábado, 14 de setembro de 1996
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Mundo de Sofia esbarra na pedra de Drummond

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Curioso. Mas por muito que eu já tivesse visto, não sem certas restrições mentais, "O Mundo de Sofia" chefiando listas de livros mais vendidos nos mais variados países, só há pouco tempo peguei o dito livro nas mãos. Um volume americano, gordinho e baixote, quinhentas e tantas páginas. Comecei a folheá-lo na livraria e a dizer a mim mesmo que, se enfrentasse o livro de Jostein Gaard, pelo menos eu poderia me gabar de haver lido um autor norueguês.
Logo a seguir me benzi, me lembrando do grande Ibsen e de Ralph Richardson representando, no Old Vic, "Peer Gynt".
Li também Selma Lagerlof. Mas Selma, me corrigi, era sueca. Par Lagerkvist também era. Ah, sim, outro norueguês, o homem de "Fome", Knut Hamsun. Todos ganharam o Prêmio Nobel de Literatura, exceto o grande e revoltoso Ibsen. Em vez dele, ganhou seu contemporâneo Bjornson, de quem só se sabe, hoje em dia, que escreveu a letra do hino nacional norueguês.
Saí da livraria com "Sophie's World" debaixo do braço e devo dizer que, em casa, ao fim de umas 30 páginas, estava convencido de duas coisas: Gaard é um professor de filosofia extraordinário e um romancista improvisado. Já se disse que ele fez, num livro só, uma espécie de imitação da "História da Filosofia Ocidental", de Bertrand Russell, e de "Alice no País das Maravilhas", de Lewis Carroll.
Sua transformação da massa de informação filosófica em textos breves, transparentes, é admirável. Disse um crítico: "O livro serve de primorosa introdução àqueles que jamais fizeram um curso de filosofia e certamente refrescará a lembrança dos que o fizeram, mas esqueceram quase tudo que aprenderam".
Aliás, desde que publicou seu livro em 1991, com imediato sucesso, Gaard disse sobre "O Mundo de Sofia", ao falar na Feira do Livro de Oslo: "Devíamos começar a ensinar filosofia nos colégios às crianças de 10 anos". Segundo ele, até essa idade, as crianças guardam uma grande curiosidade, vizinha do espanto, sobre o mundo que as cerca.
"Quem é que eu sou?" "Que mundo é este em que me encontro?" Esse desejo de conhecer o fundamental se dilui e se perde com a vida adulta, seus cuidados e obrigações. "Eu sou eu, pô. Qual é?" "O mundo foi sempre essa droga", é o que a maioria das pessoas tende a pensar, passadas infância e adolescência, até o dia da morte.
É nesse caminho de reacender nossos espantos que "O Mundo de Sofia" funciona. A parte em que Gaard toma como modelo Lewis Carroll é frágil. Aliás, já que Freud é citado no livro, digamos que Freud explica. Alice é tão viva e suculenta porque Carroll, filho de pastor protestante, quase clérigo ele próprio, nutria uma secreta paixão de vitoriano solteirão por menininhas, enquanto que Gaard é casado, pai de filhos, e, ao que tudo indica, homem de ego tranquilo e id bem amordaçado.
No entanto, se pararmos de comparar a incomparável Alice com a menina Sofia, constataremos que vale também a pena acompanhar Sofia em sua Wonderland filosófica. Gaard soube, com astuta simplicidade, escrever um livro aparentemente ligeiro, otimista, mas que nos leva ao impasse em que nos achamos hoje.
Para responder a "Quem é que eu sou?" ou a "Que mundo é este?", o autor, paciente, começa por desenterrar os primeiros mitos que o homem inventou para responder a si mesmo -e aqui apela para os seus heróis e deuses nórdicos, parecidíssimos com os de qualquer outra latitude, ou com os dos índios brasileiros de hoje.
Diferente foi quando os homens, cansados de criar suas histórias da carochinha, resolveram ficar gregos e buscar respostas no puro raciocínio. Apareceram, em Mileto, Tales, que previu um eclipse solar em 585 a.C., e Anaximandro, dizendo que tudo era ar ou vapor e daí surgem gelo, água, terra.
Pouco tempo depois, Heráclito decretava que ninguém pode tomar dois banhos no mesmo rio. Quando entramos no rio pela segunda vez, nem nós, nem a água, somos mais os mesmos. Até hoje nos gela a água de Heráclito.
Em todo o curso de "O Mundo de Sofia", vamos assistindo, a partir daí, ao desenrolar da majestosa lista dos reis de verdade que temos tido ao longo dos séculos: Sócrates, Platão, Aristóteles, Descartes, Spinoza, Hegel, Kierkegaard, Nietzsche, Marx, Sartre, Darwin, Freud.
Darwin? Freud? A grande filosofia parece ter murchado muito, desde, talvez, Nietzsche, que deu a Deus seu atestado de óbito e previu a vinda de um super-homem que ainda parece tão distante de nós ou tão improvável quanto o Godot de Beckett.
Assim como quem não quer, Gaard leva Sofia até Ionesco, até o Teatro do Absurdo, e a uma espécie de pai esquecido desse teatro, que foi Charles Chaplin. Gaard diz de Chaplin que o efeito cômico que ele criava em seus filmes vinha "da aceitação lacônica de todas as coisas absurdas que lhe acontecem".
Chaplin tinha, portanto, como tem Beckett, a mesma capacidade das crianças de aceitar como natural tudo que acontece, de viver sem exigir explicações.
Não sei como, nesse perigoso final de viagem, Gaard não relembra, ao lado de Chaplin, Buster Keaton, sobretudo como o estranho anti-herói e estrela do único filme que Beckett escreveu, denominado, simples e definitivamente, "Film".
Jostein Gaard não agrava, não torna explícito, nas últimas conversas com Sofia, o aspecto beco-sem-saída de um mundo cada dia mais tecnológico e menos filosófico, mais informado e menos instruído.
"O Mundo de Sofia", talvez a despeito de si mesmo, ou do próprio autor, acaba por comunicar ao leitor uma visão do fim da história da filosofia, fim do mundo racional, que tanta força fez, desde Mileto, para acabar com os mitos e as superstições.
A ciência moderna, o Teatro do Absurdo, o Big Bang colocam o homem diante da picada de Tom Jobim, cujo fim, naturalmente, é a pedra encontrada no meio do caminho pelo Drummond.

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