São Paulo, domingo, 15 de setembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um artista da desconversa

JOSÉ MARCOS MACEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

No auge do período burguês, os escritores foram alçados à condição de aristocratas e, por esse mesmo motivo, ao esgrimir com palavras e não mais com espadas, sentiram-se profundamente compelidos à ação. Permaneceu porém o desconforto de trocar a gramática pelos atos, algo que já afligia Hamlet, "lento nas antecâmaras de sua vingança", ao comprovar que lhe tocava "esvaziar o coração de palavras e incorrer em blasfêmias, feito uma verdadeira meretriz". Machado de Assis, a quem animavam razões diversas para escandir seu ódio, equacionou o problema devotando-se às crônicas, gênero a meio caminho entre a dignidade literária e os "faits-divers" do dia-a-dia, o qual lhe permitia sujar as mãos no fato miúdo sem desonra para a palavra. Na crônica de 24 de setembro de 1893, que bem pode ser tida como paradigma de toda a série "A Semana" publicada na Gazeta de Notícias entre 1892-93 e que se publica agora com introdução e notas sempre impecáveis de John Gledson, Machado sonha que é condenado no dia do juízo (sob o estrépito do tiroteio da Revolta da Armada, que eclodira no dia 6 do mesmo mês) pelo fato de o seu breviário ser um dicionário. Sob ameaça de desintegração social, esta é a arma que lhe resta para dar rédea solta a sua ironia afiada, rodeada de uma amargura lúcida e sempre fleumática que fará as delícias dos leitores (mas que a custo seriam lidas sem o olhar judicioso do editor).
Na verdade, o objetivo das crônicas é entorpecer o assombro do leitor médio, sepultando-o sob a aparência agradável e divertida de uma prosa escrita ao correr da pena, ao mesmo tempo que acena com idéias mais profundas para a vista perspicaz. Como é do estilo, Machado toma pulso da situação de forma oblíqua e dissimulada, como se aludisse a outros assuntos, cercando-se de todas as precauções para não se indispor com o leitor (à diferença do que ocorria nas crônicas intituladas "Bons Dias!"), esmerando-se em polir o que já se chamou de "arte da desconversa" -um bálsamo que não raro se revela uma armadilha perversamente sarcástica. Ninguém melhor do que Gledson, cujo faro detetivesco talvez lhe tenha sido infundido pela nacionalidade, para "destecer o arco-íris", nas palavras de seu conterrâneo John Keats. Apesar dos gestos estudados com que castiga a frivolidade da crônica e lamenta (ou alardeia) sua ignorância política e econômica, as tramóias financeiras são um tema constante a frequentarem suas páginas, o que não admira: os efeitos do Encilhamento, um período de "epidemia da jogatina" sob o signo do "Enrichissez-vous!" francês, fizeram-se sentir por todo o governo Floriano. De tradição liberal-monárquica, o anti-republicano Machado vivia às turras com um regime que, além de não ser o dos seus sonhos, ameaçava ruir sob um federalismo nunca imune à desintegração (como provava a revolução federalista no Sul). Abandonado ao deus-dará, à inércia de um povo que assistia bestializado ao desenrolar dos eventos (ou que, quando participava, agia às avessas, como na Revolta da Vacina de 1904), o país seria presa fácil de "um bom governo oligárquico, sem excessos nem afronta, e natural como as verdadeiras pérolas". A composição das elites, como se sabe, deu-se apenas na virada do século, patrocinada por Campos Sales; até então, o poder estaria entregue a toda sorte de larápios, que nos diriam tranquilos: "Meus filhos, podem ir descansados; eu fico sendo democrata e imperador".
Por ser o único romance de Machado cujo enredo ultrapassa as fronteiras cronológicas do novembro de 1889, "Esaú e Jacó" guarda óbvias semelhanças com esta primeira parte das crônicas de "A Semana". Não somente pelo meticuloso mas velado confronto entre império e república (que no romance ganha sua efígie no episódio da tabuleta do confeiteiro Custódio), mas também, como sugere Gledson, pela "tendência da República para cisões binárias". Espécie de tubo de ensaio para treinar a mão do narrador, tais crônicas repetiriam em ponto menor o exercício de lançar o leitor na "atmosfera de dúvida e insegurança, misturada com ambiciosa especulação", já detectada em "Esaú e Jacó", e cuja superficialidade evocada (um reflexo dos tempos) desceria ao nível da ópera cômica. Aliás, ao citar "As Bodas de Fígaro", Machado lembra que na França tudo termina em canções; no Brasil, "tout finit par des opéras, et même un peu par des opérettes..." Nosso país, é fato, sempre esteve mais para Offenbach do que para Beaumarchais.

Texto Anterior: Lançamento acontece amanhã
Próximo Texto: Imagens da solidão e do desejo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.