São Paulo, domingo, 15 de setembro de 1996
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Amigo do povo

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Por circunstâncias de minha vida pessoal, primeiro na academia, depois na política, conheci algumas pessoas que encarnavam ideais. Que faziam de suas vidas dedicação a causas. Às vezes, essa atitude, por melhor que fosse o sentido da luta, cegava para outros valores humanos, para a riqueza da vida.
Certamente não é esse o caso de d. Paulo Evaristo Arns, a quem eu quero fazer uma homenagem de amigo pelos 75 anos bem vividos. Idéias claras em sintonia com o tempo histórico e sensibilidade para as coisas humanas, dignidade que se combina com compreensão, firmeza nas convicções e admirável tolerância, foi essa combinação de virtudes que aprendi a admirar em d. Paulo.
Tenho orgulho de nossa amizade, construída, nos anos duros do regime autoritário, em torno da luta pela democracia, pelos direitos humanos, pela liberdade e pela justiça. Luta que prossegue, inesgotável, e que nos aproxima, o pastor e o político. Por métodos diferentes, queremos o mesmo bem da comunidade. Nossos valores, nosso interesse comum têm sido a matéria de incontáveis conversas, de reuniões modeladas pelo melhor diálogo e que têm longa história.
Nossos primeiros contatos ocorreram nos anos 70, quando se articulou uma parceria de trabalho entre a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, criada por d. Paulo, e o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), que fundei junto com outros pesquisadores afastados do exercício de suas funções quando o arbítrio penetrou a universidade brasileira.
A Comissão contratou o Cebrap para algumas pesquisas, a mais importante das quais deu origem ao livro "São Paulo. Crescimento e Pobreza", de 1976, no qual se fazia uma análise dos pesados custos sociais que acompanharam o crescimento de São Paulo, uma situação que, de certa forma, permanece até hoje. O livro teve forte impacto, desgostou gente que preferiria esconder as realidades, como se as cortinas de silêncio fossem solução para os problemas sociais.
Fiquei ainda mais próximo de d. Paulo quando ele foi a primeira pessoa a visitar a sede do Cebrap após um atentado a bomba. Companheiros de d. Paulo na Comissão Justiça e Paz se juntariam posteriormente à minha trajetória política, entre eles lembro José Gregori, que continua, agora no governo, as batalhas pelos direitos humanos, numa compreensão que certamente deve muito, no Brasil de hoje, aos ideais que forjamos nos anos 70.
Nas greves de 1977/78, participei, no ABC paulista, dos esforços da Comissão Justiça e Paz para manter o diálogo e evitar que o conflito entre os trabalhadores e as forças militares e policiais degenerasse em violência. Lembro-me bem dos encontros que ali tivemos e do papel importante exercido pelo bispo de São Bernardo, d. Cláudio Humes, que mantinha consultas constantes com d. Paulo.
Consolidada assim nas dificuldades que ambos enfrentamos, junto com inúmeros outros companheiros, para que o Brasil pudesse superar o autoritarismo, minha amizade com d. Paulo se manteria para sempre, até os dias de hoje, com base em respeito mútuo e na minha admiração por sua liderança.
O cardeal de São Paulo é uma referência ética para minha geração e para todos os brasileiros. Em todas as campanhas políticas de que participei, inclusive a última, para a Presidência, sempre ouvi d. Paulo para aconselhar-me, para saber seus comentários e ponderações, feitas com sabedoria e serenidade, tendo como pano de fundo uma preocupação invariável com a condição dos menos favorecidos em São Paulo e no Brasil.
No ano passado, um comitê independente escolheu d. Paulo para ser a primeira personalidade brasileira agraciada com o Prêmio Nacional de Direitos Humanos, instituído pelo governo federal. Recordo-me com muita clareza da cerimônia de entrega do prêmio e das palavras generosas com que, no discurso que fez na ocasião, d. Paulo se referiu a mim.
Naquele dia, ao fazer-lhe a entrega de um prêmio instituído por meu governo, vivi uma grande satisfação pessoal, íntima, mas que agora torno pública, por estar sendo eu ali, mais do que o presidente do país, um cidadão brasileiro que homenageava, como qualquer outro, um homem que conduziu sua obra por estar imbuído do melhor sentido da fé e do humanismo, por estar dotado, ao mesmo tempo, de uma capacidade extraordinária de trabalho e de assumir sacrifícios pessoais em nome do interesse da coletividade.
Quis deixar aos brasileiros, quando d. Paulo completa 75 anos de idade, este simples testemunho de alguns fatos que marcaram nossa convivência. Para que fiquem registradas a gratidão e a amizade que tenho por uma das maiores figuras da história brasileira recente. O cardeal é um "amigo do povo". Não há melhor maneira de caracterizar o que fez nem de revelar o cerne de suas lições, de seu admirável apostolado.

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