São Paulo, terça-feira, 17 de setembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

As armas em questão

JANIO DE FREITAS

De vista, já os conhecia há muito tempo. A caminho do jornal, vejo-os sempre na avenida Atlântica, ora no calçadão da praia, ora no passeio que divide as duas pistas. Não me escolheram, propriamente, mas a janela do carro aberta uns quatro dedos, porque não fazia calor para o ar condicionado e a dose de perfume, vinda do banco do carona, pedia algum atenuante.
O conhecimento visual deu certa naturalidade à cena. Tanto que apenas tratei de acionar o elevador do vidro, quando vi quem me dava a ordem. A boca metida na fresta, a frase era sussurrada com insistência: "Só o dinheiro todo, só o dinheiro. Dos dois. Depressa". O vidro não se moveu. O meu conhecido o retinha com uma das mãos. Como o sussurro insistisse, grunhi meu desacordo e engrenei a primeira, na esperança de que o trânsito movesse uns metrinhos. Aí não era o rapaz que segurava. Eram o Cesar Maia e o Luiz Paulo Conde.
Chegou o segundo. Esse não tem cara de rapazinho de rua, do que em São Paulo chamam de trombadinha. Esse, já taludo, tem o tipo indisfarçável do facínora. Não lhe falta nem uma cicatriz de corte na cara, como convinha aos marginais do tempo da navalha. Chegou com a autoridade que a cara lhe dá: "Entrega logo se não te dou um tiro". Não tenho sido uma pessoa sensata em situações assim ou assemelhadas, e parece que alguma idéia idiota já começava a se insinuar. Se começou, não completou.
Na hora, não percebi o que acontecera. Só vi que um dos meus conhecidos se voltou para a frente do carro e correu na direção oposta. Então notei o homem que brandia uma pistola reluzente, já entre o meu e o seu carro, à frente. Mas precisou investir mesmo, porque o primeiro chegado à minha janela o desafiava. Não sei se decidiu pela fuga por causa da arma já próxima ou da frase que ocorreu ao homem naquela circunstância: "Vamos acabar com essa pouca-vergonha".
Antes que o homem, elegante, sem espalhafato, entrasse no seu carro, pude reunir mais elementos para entender o que se passara: foi um assalto ao carro à sua frente que o fez descer com a arma e, cumprida a primeira missão beneficente, notar que também o de trás, o meu, dependia da mesma boa vontade.
Não se tratava, com toda a certeza, de policial. Além de outros indícios em tal sentido, um foi definitivo: feito o seu gesto digno e solidário, não me permitiu agradecer. Saiu em ziguezague, tão depressa quanto Cesar Maia permitiu, das duas vezes em que emparelhei para agradecer. A intimidade com a cena de violência faria um policial agir comigo de outro modo.
A banalidade do episódio não justificaria o papel aqui consumido. Mas desde o meio da semana já me incomodava o projeto contra o porte de arma, em tramitação no Congresso. Não sou favorável ao porte de arma, é claro. Mais do que isso, também considero indispensável que seja reprimido, o que não é feito nas cidades feridas pela violência. Não é, porém, com radicalizações precipitadas por ondas de insegurança ou por insuficiência de reflexão, como se dá com o extremado projeto contra o porte de arma, que a violência urbana será debelada.
Quem me prestou auxílio é, ao que deduzi por vários indícios, juiz ou promotor ou algo assim, pessoa sem dúvida qualificada. Soube fazer uso do arma que, não será exagero presumir, porta por alguma dose de necessidade. A necessidade, por exemplo, que os promotores podem sentir, incumbidos tantos deles, constantemente, de acusações de criminosos e bandos perigosos. Os parlamentares lhes estão negando o porte de arma, no entanto.
Os projetos contra a violência e o da nova lei de trânsito são mais primários e demagógicos do que promissores. E fora do Congresso prevalecem, explorando a violência à sua maneira, o marketing, o carreirismo, o festivo enganador.

Texto Anterior: FRASES
Próximo Texto: Erundina defende greve em serviços essenciais
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.