São Paulo, terça-feira, 17 de setembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O cinema é uma misteriosa cachoeira

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Muita gente chega para mim e diz: "Como é? Você não vai voltar a fazer cinema?" "Sei lá", respondo. E penso: "Que cinema? Comercial, americano, metafísico, político, nacionalista, de amor, experimental? O quê?"
Tenho vontade de filmar de novo, mas, para fazer alguma coisa que fosse tênue, mas útil, melhor dizendo, alguma coisa que fosse um mistério para sempre, uma alegria para sempre, um cinema que não comerciasse com a realidade dura do sistema, que tocasse em alguma coisa impalpável.
Nos anos 60, todo mundo buscava um cinema essencial, o chamado "específico fílmico", que uns achavam que estava em Eisenstein, outros em Murnau, outros em Dreyer.
O cinema era a "síntese das artes", e não esta violência sórdida que está aí. E todo mundo pensava: "Qual é a alma do cinema? O que é o cinema?"
Sempre que me perguntam isso, eu me lembro de Humberto Mauro, que conheci já velhinho.
Para Humberto Mauro, o célebre cineasta-fundador dos anos 20/30, "cinema é cachoeira". Por quê? Vou contar.
Quando ele fazia seus filmes de fundo de quintal ainda em Cataguazes, depois na Cinédia no Rio, todo amigo que ele encontrava na rua dizia para ele: "Humberto, meu querido, você precisa é ir ao meu sítio lá em Correias, ou lá nos cafundós, filmar a cachoeira que tem lá! Você precisa ver que cachoeira!" Eo Humberto Mauro ficava com aquilo na cabeça: "Por que querem que eu filme cachoeiras?"
Um dia, ele estava dando uma palestra para uns cinéfilos de um cineclube do interior, quando, já na estação, atrasado para pegar o trem, um garoto agarrou-o pelo paletó e perguntou-lhe sobre o grande enigma: "Seu Mauro, afinal de contas, o que é a essência, a 'alma' do cinema?"
E o velho Mauro, correndo atrás do vagão que partia, deu a grande definição, no meio da fumaça da locomotiva: "Cinema, meu filho, é cachoeira!"
Vida virtual
Hoje ninguém pergunta mais isso. Agora que parece renascer a produção, os jovens (e velhos) cineastas deviam estudar mais.
Muitos têm uma familiaridade grande com a imagem, geralmente da publicidade e do clipe. Mas muita gente boa pensa que cinema começou com Wim Wenders e que estética de filme é lente grande angular com contraluz azul. Cinema virou essa coisa estratificada por Hollywood. Ou esse videoclipão.
Pior. Tantas são as formas de reprodução da imagem, tanta é a virtualização da realidade, que talvez a pergunta devesse ser feita por alguém na tela, algum fantasma projetado na tela nos perguntando, invertidamente: "Ei, você aí!... O que é a realidade?"
E nós diremos: "Realidade é essa coisa que está aqui do lado de fora de nosso corpo, fluindo sem parar. Realidade é essa ilusão dos sentidos, esse fluxo de signos. Realidade é essa incessante explosão de DNA que vai gerando vida, essa programação de formas que tem de se reproduzir e que nós perseguimos, tentando interpretar".
Acho que o cinema perdeu sua magia de antes, porque, quanto mais se aperfeiçoam as maneiras de penetrar na realidade, mais distante ela fica. Quanto mais se fazem descobertas, mais fundo é o túnel do mistério.
Cemitério de estrelas
Hoje, vemos que a máquina do mundo, quanto mais aberta, é mais vazia e misteriosa. A fome de decifrá-la, digitalizá-la, matematizá-la descreve-a, mas não a condensa.
Por isso a idéia de cachoeira é a metáfora melhor de cinema. Essa imagem "heraclitiana" de uma água que não pára de fluir é ótima para definir nossa arte do século.
Por isso, os amigos de H. Mauro, na sua sabedoria para o óbvio, diziam no botequim: "Vai lá filmar minha cachoeira!" Só o movimento tem de ser filmado. Só as cachoeiras da vida têm de ser retratadas na busca de alguma verdade.
Não há uma realidade que finalmente pare e se configure. Buscá-la, tanto no cinema como na filosofia, tanto na arte quanto na política, é fracasso certo.
Esse foi o aprendizado do século 20. Tentou capturar o vasto e incessante universo em fórmulas que o esgotassem e nada ficou preso. Por mais que queiramos que o cinema seja a arte de captar a vida, o cinema é a arte da morte.
Sem bodes, irmãos, mas vejam como Hollywood é um doloroso cemitério de estrelas. É um cemitério de beijos e olhos e corpos embalsamados no tempo da película. Vejam como Fred Astaire dança no ar do nada, vejam como James Dean já prefigurava sua morte na própria interpretação de sua melancolia.
Como dói se apaixonar por uma morta, como eu me apaixonei por Brigitte Helm em "Metropolis" e como amei as pernas perfeitas de Louise Brooks, numa necrofilia de sala escura.
Mesmo num musical, o cinema filma a morte; mesmo no filme de ação, quando todos tentamos burlá-la numa ginga, num drible, ela não deixa. Como é estranho que Gene Kelly tenha morrido, aquele anjo de juventude, como pôde Kirk Douglas ter um derrame e gaguejar na festa do Oscar, como pode o nosso Super-Homem estar na cadeira de rodas?
O trágico do cinema é sua maior verdade. A pintura e outras artes tentam exorcizar a morte, todas as artes fazem isso. Mas, nelas, ninguém se mexe. A barra é mais leve. No cinema não há perdão. Ligou a câmera, lá está a velha morte nos olhando.
Henri Bergson, ao ver o "cinematógrafo" pela primeira vez em Paris, deu a grande definição: "O cinema é importante, para que se saiba no futuro a maneira como os antigos se moviam".
Não há ideologia ou política ou arte ou filme ou literatura que dê conta do implacável fluir dessa cachoeira que se chama "vida". Toda a tragédia dos séculos têm sido a tentativa de trancar o movente em fórmula fechada, de alcançar um céu estático, um dia em que tudo se resolva.
O paraíso seria um lugar imóvel, onde não houvesse a morte e portanto, nem cinema. Não há "cinema paradiso" (talvez por isso o filme seja tão ruim).
Hoje estamos todos na saudade desse passado. Queremos voltar, principalmente os intelectuais e outros religiosos, a esse tempo em que a morte seria dominada pela técnica, em que o paraíso fosse planejável.
Não há isso. Agora que renasce o cinema no Brasil, vamos buscar filmes mais complexos, menos mecânicos.
Somos uma cachoeira olhando a outra, e todas as nossas ações no mundo têm esse fracasso fundamental: por mais que olhemos no fundo das coisas, jamais veremos um fim ou um início. A galáxia e o ovo, todos estão num fluir sem rumo. Por isso, a cachoeira é a melhor definição de cinema, ou da vida.

Texto Anterior: "Fresh" é uma surpresa
Próximo Texto: Nova loja aposta em design com economia e qualidade
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.