São Paulo, quinta-feira, 19 de setembro de 1996
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Alban Berg Quartet beira o insólito

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

É uma experiência e tanto escutar de novo a integral dos quartetos de corda de Beethoven, do número 1 ao 16, em ordem e seguindo a partitura.
Para quem nunca ouviu, deve ser como a revelação do mundo, uma descoberta que divide a vida em antes e depois.
Para quem vem convivendo com eles há anos, para quem a vida mesmo parece, às vezes, só uma explicação mal feita desses quartetos, uma audição concentrada é algo assim como reler Proust inteiro, ou Shakespeare: um retorno ao centro indecifrável da existência, perpetuamente aberto e opaco à nossa interpretação.
Os últimos seis quartetos são por consenso o ponto mais alto da tradição, num gênero próprio, para além de qualquer ordem.
Quando uma obra assume o papel de um clássico, destaca-se de seu período original, mas continua marcada por ele. Já esses quartetos (como as últimas sonatas) não parecem pertencer a período algum: já não pertenciam, quando foram compostos.
Presente, passado e futuro se misturam em composições que parecem usar de tudo o que existe na música, mas onde a ambivalência das formas não implica em simples ironia.
A pergunta dos psicanalistas -de onde (não o que) ele está falando?- ficará sem resposta, evidentemente para sempre. Pois o que Thomas Mann chamava de "mágica das associações" não se restringe à manipulação de intervalos e motivos, e se multiplica em 250 anos de espanto e admiração, e interpretações fracassadas.
Intérpretes musicais propriamente ditos, e bem sucedidos, não faltam. No ano em que comemora seus 25 anos, o Alban Berg Quartet, relança essa gravação de estúdio, do início da década passada. (Mais recentemente, o mesmo ABQ gravou a integral dos quartetos ao vivo).
É a contraparte transcendental de quatro CDs de música do século 20, lançados há três meses e já resenhados na Folha.
Curiosamente, para um quarteto tão dedicado à música moderna, a glória maior dessa gravação não são os últimos quartetos, mas os da fase média, os op. 59, 74 e 95.
Ninguém - exceto, quem sabe, um grande poeta - poderia resumir os quartetos de Beethoven em 40 linhas; acho que nem em 40 anos.
Eu, que não sou poeta, e ainda não cheguei aos 40, prefiro deixar a palavra final com alguém que cumpre os dois requisitos.
Num artigo de 1946, hoje em "Formação de Discoteca" (ed. Giordano), Murilo Mendes argumentava que conhecer os quartetos era um dever de todos; e arrematava: "O homem... que não encontrar, em certas passagens dos quartetos, muito de si mesmo, de seus problemas, de suas dúvidas e afirmações, é um homem para quem a vida é um acidente casual e não pode ter a profunda e transcendente significação que de fato tem; é um homem que não viveu e passa como uma sombra." Passa, sombra. E vamos nós viver de Beethoven.

Disco: Quarteto Alban Berg interpreta Quartetos de Corda de Beethoven (versão de estúdio)
Gravadora: EMI
Série: Classics (10 CDs)

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