São Paulo, sexta-feira, 20 de setembro de 1996
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O "bocadillo" de Gutiérrez Alea

MAURICIO VINCENT
DO "WORLD MEDIA"

Neva lá fora. Charles Chaplin está desmaiado e Big Jim anda pela cabana nas montanhas a passos largos. "Comida, comida!", urra o gigante. Os dois passaram vários dias de barriga vazia, e Carlitos já engoliu uma vela. Diante das queixas de seu amigo, resolve cozinhar uma bota em fogo baixo. "Faltam só dois minutos", diz Carlitos para tranquilizar Big Jim. Na mesa, Big Jim se apodera da parte superior do sapato e Chaplin come a sola como se fosse um filé e enrola os cordões como se fossem espaguete.
"Existem cenas ou filmes que a gente gostaria de passar a vida assistindo", disse o cubano Tomás Gutiérrez Alea. O cineasta morreu em abril passado, em Havana (Cuba).
"Titón", como é conhecido em Cuba, é o criador de filmes memoráveis como "A Última Ceia" e "Morango e Chocolate", mas acha que é mero acaso o título de duas de suas obras mais conhecidas terem a ver com mesas e gastronomia.
Também seria por acaso que a cena mais longa que já filmou, com 55 minutos de duração, se desenrola por inteiro na sala de jantar improvisada de um engenho de açúcar, onde numa Quinta-Feira Santa o conde de Casa Bayona reúne 12 escravos e, como Jesus Cristo, passa a noite inteira com eles em torno de uma mesa que inclui manjares bíblicos e também carne de porco, mandioca e pratos tipicamente cubanos.
"Titón" estava em sua casa de Miramar, já doente. Apesar disso, um tema tão incomum quanto "cinema e gastronomia" o anima a viajar por sua memória e a recordar cenas tão grotescas e eróticas quanto aquela em que Albert Finney e a mulher, que mais tarde revela ser sua mãe, vão se excitando até manter relações sexuais enquanto comem frango e ostras, nos primeiros planos do filme "Tom Jones", de Tony Richardson.
"Cinema e gastronomia, cinema e erotismo, erotismo e gastronomia -não são coisas muito fáceis de definir."
Sobre os diretores que mais o influenciaram quando era simples espectador, e, mais tarde, como fontes, "Titón" sempre alude a Luís Buñuel -"talvez seja ele quem me causou o maior impacto"- e a Chaplin.
São dois mestres do absurdo e da gastronomia. É impossível esquecer cenas como a da alucinação de Big Jim em "A Corrida do Ouro", quando vê Chaplin transformado numa galinha enorme e lhe diz: "Prepare um fogo muito grande".
"Tampouco as clássicas cenas de pastelão do Gordo e do Magro" (que Gutiérrez Alea utilizou em "A Morte de um Burocrata"), "que começam com um pisão e terminam numa batalha campal."
Para a preparação da cena principal de "A Última Ceia", um de seus filmes preferidos, "Titón" fez um estudo cuidadoso do quadro de Leonardo da Vinci. Surgiu uma grande polêmica sobre quais alimentos colocar na mesa. Finalmente foi decidido que já que a cena se passava em Cuba, num engenho de açúcar e no final do século 18, seria preciso colocar ingredientes próprios da comida cubana ao lado do peixe mostrado no quadro original.
"Titón" foi muito rigoroso, pois aquela cena continha o núcleo do argumento do filme e todos os personagens estavam presentes à mesa. Isabel Amado Blanco, mulher do embaixador cubano em Roma, Luis Amado Blanco, e professora de cerimonial e protocolo no Ministério das Relações Exteriores, se encarregou de organizar a mesa, enquanto o cardápio ficou a cargo de Nitza Villapol.
Villapol era uma famosa professora de culinária que tinha um programa de televisão chamado "Cocina al Minuto" (Cozinha Trocada em Miúdos), no qual, antes da revolução cubana, ensinava o preparo de pratos de lagosta de faisão, mas que depois degenerou em receitas do "período especial", isto é, do racionamento imposto por Fidel Castro -pratos como bisteca de casca de cidra, picadinho de casca de banana ou sopa de urtigas.
"Era uma sequência de quase uma hora que se desenrola inteira na sala de jantar onde a cena tem lugar. Era um desafio para mim, tanto pela necessidade de conseguir uma estrutura dramática dinâmica que não deixasse o espectador perder interesse, quanto pelos limites estreitos impostos pela própria situação." "Titón" lembrou que, durante a cena, os escravos iam se apresentando como personagens, não como uma simples massa que serve de base para o argumento principal.
"Também havia bocadillos divertidos." Para os cineastas cubanos, um "bocadillo" (que também significa lanche) quer dizer um diálogo curto de um personagem. Gutiérrez Alea lembrou-se especialmente de um "bocadillo" que, com certeza, tinha a ver com a concepção negra da gastronomia, à moda de Chaplin.
O conde havia pego um filão de pão branco e repetia aos escravos as palavras de Cristo. "Comei deste pão, que é minha carne. Bebei deste vinho, que é meu sangue". Então o negro Ambrosio exclama: "Meu Deus, comeram Cristo?"
Outro filme de Gutiérrez Alea em que a mesa constitui elemento fundamental é "Los Sobrevivientes". O filme conta a história de uma família da burguesia cubana, a família Orozco, que se fecha em sua mansão em Havana diante da vitória da revolução, para não se contaminar. Seus integrantes mandam encher a despensa com víveres, carne, presunto, mariscos, vinho, e se preparam para permanecer na casa fechada por muito tempo.
Pouco depois, recebem de seus familiares que emigraram para Miami um envelope de sopa em pó e uma carta. A curiosidade foi grande -como seria a sopa americana, de boa qualidade? A família a prepara no mesmo dia e, durante o almoço, depois do primeiro prato, lê a carta, em que seus parentes explicam que enviavam o envelope de sopa com as cinzas da avó, cuja última vontade era ser enterrada em sua pátria.
"A anedota é real, não uma idéia inventada. Depois de 1959, coisas como essas realmente aconteceram."
Como o regime de Fidel não é derrubado, as vidas vão se acabando na mansão dos Orozco, e das suculentas cenas ao ar livre passa-se a cultivar a terra. Os criados da casa se convertem primeiro em empregados da terra e depois em escravos, pura e simplesmente, e chega um momento em que conseguem fugir e os senhores ficam sozinhos. Nesse instante, meia dúzia de Orozcos se precipitam para dentro do casarão e, ao ver que a despensa está vazia, vão buscar as velhas armas da família e se lançam à caça do único sobrevivente comestível da casa: um gato preto.
O filme termina, mais uma vez, à mesa. Os únicos membros da família que ainda não morreram estão sentados à mesa, vestidos a rigor, e a mesa ostenta candelabros de prata, toalhas e toda a parafernália burguesa. O prato servido é a carne da tia, morta no dia anterior e "cozinhada" por um raio.
Deitado em sua casa em Miramar, com um meio sorriso nos lábios, Gutiérrez Alea disse que o filme de Buñuel que mais gosta de assistir é "O Anjo Exterminador". Lá fora, já é noite em Havana.

Tradução de Clara Allain

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