São Paulo, domingo, 22 de setembro de 1996
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Da falsa "via prussiana" à falsa via liberal

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Tenho 40 anos de brasileira, quase o dobro do que fui portuguesa. O que mais me espanta neste país é a capacidade de as classes dominantes promoverem sucessivas "revoluções" e pactos conservadores que têm conduzido o Estado, a economia e a sociedade a um processo contínuo de desenvolvimento desigual e combinado, tanto das forças produtivas quanto das relações sociais, desde a sociedade mercantil escravista até os nossos dias.
Os sucessivos "modelos" de desenvolvimento capitalista combinaram sempre o atraso e a modernidade, sob várias formas de inserção internacional dependente (com economia aberta ou fechada) e fizeram do capitalismo brasileiro um caso historicamente notável de dinamismo e escandalosa desigualdade econômica e social.
Qualquer que tenha sido o pacto político em termos de frações regionais e de classe -e apesar da dinâmica de substituição das elites dirigentes ter sido muitas vezes tormentosa- a natureza do "pacto dominante" permaneceu sempre a mesma, sua base de sustentação continuou sendo a manutenção do monopólio privado da terra e do dinheiro. O controle do aparelho político do Estado, subordinado aos interesses mercantis mais imediatos ou a aspirações políticas mesquinhas contingentes, sempre operou como mecanismo de repressão dos interesses populares, com atraso recorrente nas relações de representação política e direitos de cidadania.
Os donos do poder não se limitaram, porém, a um patrimonialismo mais ou menos visível e um autoritarismo mais ou menos abrandado. Sempre foram exímios em fazer "projetos de futuro" em que prometiam ora a "grandeza nacional" ora o paraíso na terra às populações marginalizadas cuja única saída de sobrevivência tem sido, até hoje, uma extraordinária mobilidade espacial. A participação nos frutos da acumulação e do progresso técnico fica sempre adiada para as calendas: depois da estabilização (na retórica liberal), ou depois do crescimento (na retórica desenvolvimentista), ou mesmo depois da "democratização" que segue os períodos abertamente autoritários e sempre resulta inconclusa.
Periodicamente, algum cientista político desavisado, comparando o país com outras experiências de capitalismo tardio, invoca a "via prussiana" como paradigma de nosso autoritarismo. Ora, nem mesmo o Estado Novo, ou o período dos generais de 1964/85 podem ser chamados de via prussiana, já que não cumpriram qualquer das tarefas das chamadas revoluções burguesas tardias. Nem a questão da terra, nem a questão da educação, nem a questão da endogeneização do progresso técnico foram resolvidas, como nas verdadeiras experiências de via prussiana (Alemanha, Japão, Coréia do Sul e Taiwan).
O último representante da nossa versão do "autoritarismo prussiano" acaba de falecer em meio a sentimentos ambíguos: o pesar dos ufanistas do "Brasil Potência", a gratidão envergonhada das poucas a quem ele salvou a vida na tentativa de extinguir os aparelhos repressivos, e a ira daqueles a quem ele mandou para a cadeia ou cassou os direitos políticos, numa longa, gradual e insegura abertura política. No seu enterro estavam todos os personagens do poder antigo e atual, salvo o presidente da República, que também faz parte do quadro de ambiguidades, só que agora emoldurando o pacto neoliberal.
As nossas intervenções, pelo alto foram quase sempre de modernização autoritária e excludente; em muitos sentidos, piores do que o modelo pombalino português, que supostamente está na raiz da consolidação política e territorial da nação brasileira. Quanto aos pactos liberais, nunca respeitaram sequer as regras universais para o dinheiro, os contratos e as leis, suposto fundamental do modelo liberal. Sempre foram uma comédia de equívocos e uma verdadeira fuga para a frente, interrompida regularmente por regressões políticas e sociais.
As soluções buscadas pelos sucessivos pactos conservadores liberais implicaram sempre traições e futricas entre os segmentos de poder federal, regional ou setorial e formas de "governança" irresponsável que envolveram repetidas vezes mecanismos de endividamento insustentável, atraso tecnológico e mimetismo cultural, já que a verdadeira "antropofagia" quem a sofreu e sublimou foi o povo brasileiro na sua luta pela sobrevivência. Só a energia e a "carnavalização" engendradas no desespero e na capacidade de adaptação de nosso povo têm permitido a esta sociedade seguir adiante, mergulhada no darwinismo social movido a símbolos de ordem, estabilidade e progresso e manipulada pelo carisma autoritário ou a "cordialidade" dos nossos dirigentes políticos "republicanos".
A "prudência e o equilíbrio" das elites liberais nunca implicaram negociação verdadeira com as classes subordinadas nem incorporação dos excluídos. Com o atual pacto de poder, no entanto, estamos beirando o abuso em matéria de fúria legislativa do Executivo, desprezo pelas oposições e mão de ferro, com luvas de pelica, sobre as organizações dos "subordinados" de qualquer classe social. Os casuísmos dos paulistas no poder são a última caricatura que nos faltava ver em matéria de retorno ao "Estado liberal".
Quando as elites políticas atuais usam os comunicadores paulistas, cariocas e mineiros -supostamente os menos provincianos-, para proclamar que o atual governo veio para arrancar as raízes do varguismo e do Estado desenvolvimentista autoritário e implantar uma nova ordem da sociedade civil, fico pensando se são apenas arautos cosmopolitas da "nova abertura dos portos" ou cúmplices conscientes da nossa pesada herança de escravismo e falso liberalismo.
Senhores escribas da corte, não precisam reler os críticos portugueses, os cariocas, os nordestinos e os gaúchos (os antigos e os contemporâneos) e nem mesmo os velhos conservadores mineiros. Basta reler Sérgio Buarque de Hollanda, Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes, os ilustres mestres de quem todos os membros das atuais elites dirigentes paulistas se supõem discípulos e que mesmo as elites mais provincianas e ignorantes devem ter lido, ao menos de orelhada.
Pela manhã, para refrescar as idéias, conviria olhar os atuais humoristas de todos os quadrantes do Brasil, em particular o cronista gaúcho mais famoso do momento. Afinal, os humoristas brasileiros substituem com vantagem os "cientistas sociais" de plantão, já que têm as idéias perfeitamente no lugar.

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