São Paulo, segunda-feira, 23 de setembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Verão apresenta a comédia cotidiana das esquinas

MICHAEL MEWSHAW
DO "TRAVEL/THE NEW YORK TIMES"

Para minha surpresa, quanto mais Roma esvazia, mais me atrai. Em Ferragosto, dia 15 de agosto, com a cidade desertada por muitos italianos, aproveitei as perspectivas de uma rara quietude.
Você podia ouvir o som das fontes e mesmo o do rio Tibre roçando suas margens. À noite, quando a fresca toma as ruas, uns poucos romanos aparecem e festas improvisadas irrompem nas praças.
Para os que têm aguda visão periférica, mesmo os dias mais quentes oferecem cenas impressionantes da "commedia dell'arte".
Uma tarde, observei três ciganos saírem de um beco, passarem no meio de um grupo de japoneses e correrem pela rua perseguidos pelos turistas, uns poucos transeuntes e uma dupla de policiais que milagrosamente estava por ali.
Os ciganos eram duas meninas e um menino, de 11 ou 12 anos no máximo. Os policiais ordenaram que devolvessem o butim, mas eles insistiram não ter roubado nada.
Quando as meninas começaram a tirar as roupas esfarrapadas para provar que nada escondiam, as japonesas decidiram minimizar as perdas e levar os maridos com elas.
Os policiais não encontraram nada na pilha de roupas deixada sobre a calçada. Os relógios e carteiras estavam com o menino, que fugira durante o striptease.
Então, mandaram as meninas se vestir e chamaram um carro de polícia. Na próxima hora, chamaram mais seis vezes. Nenhum apareceu.
"O que vocês esperam?", disse alguém em voz alta. "É agosto."
O discurso é um refrão em Roma. Quando quer que o correio atrase, que as linhas telefônicas se congestionem, agosto é o culpado.
Uma vez, num táxi, perguntei por que os semáforos foram desligados. O motorista: "É agosto".
"Mas não é perigoso?"
"Não, é mais seguro."
"Não entendo."
"Quando os semáforos funcionam, você nunca sabe se algum cretino vai passar o sinal vermelho e bater em você. Mas, quando não há semáforos..."
"Todos são mais cuidadosos", replicou enquanto disparava pela rua deserta a mais de 120 km/h.
Perguntas pessoais Em todos os lugares aos quais fui, estranhos me perguntavam por que eu estava na cidade.
Éramos tão poucos que eles achavam que estávamos no mesmo barco e não se envergonhavam em fazer perguntas pessoais. Eu acabei fazendo o mesmo.
Quando a banca de jornais do bairro fechou, tive de andar 1,6 km até a próxima. Depois de alguns dias, achei que tinha o direito de perguntar ao dono por que ele continuava funcionando.
Sua voz tremeu de emoção: "Enquanto eu não tiver um Caravaggio, preciso trabalhar".
Onde mais, senão em Roma e em agosto, admirei-me, encontra-se um jornaleiro que não apenas sabe o nome um importante pintor da Renascença, mas cujo objetivo é possuir uma de suas pinturas.
"Você é conhecedor de Caravaggio?"
"Quem não é?"
"Quanto tempo vai levar para você ter um?"
"Talvez tenha esta tarde."
Ele tirou uma caixa de charutos do balcão, abriu a tampa e mostrou uma nota de 100 mil liras. "Caravaggio", disse. A efígie do pintor está na nota, assim como a de Ben Franklin está na de US$ 100.
Em agosto do ano que vem, espero voltar a Roma. Vou procurar por rostos familiares -o jornaleiro amante de Caravaggio, um grupo de pessoas tomando sol na praça de Espanha e o trio de ciganos, agora mais velho e mais vil.
Se algum dia uma canção sobre meu lugar e estação favoritos for feita, pode sobrar para mim a tarefa de escrever a letra.
(MM)

Texto Anterior: Roma reúne iniciados do mês de agosto
Próximo Texto: Publicações 'viajam' na história italiana
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.