São Paulo, terça-feira, 24 de setembro de 1996
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Sávio é vítima ululante, e não um pusilânime

MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO

No começo, as brincadeiras quase pueris ainda ofendiam torcedores do Flamengo. "Lá vai o cai-cai", provocavam os rivais, apontando para Sávio.
Com o tempo, a ironia ganhou tons de crueldade, como no fim do ano passado, quando o ataque dos sonhos acumulava fracassos.
"O Flamengo tem um ataque de circo: um animal (Edmundo), um palhaço (Romário) e um pipoqueiro (Sávio)."
A contratação de Bebeto foi novo incentivo para investidas monocórdias: "na Gávea, a diretoria proibiu forno de microondas; tem medo de que Sávio e Bebeto pipoquem".
Variação em torno do mesmo conteúdo: "Joel tem um ataque 'porta de cinema': um pipoqueiro de cada lado".
As piadas, no fundo, continuam as mesmas. O que mudou foi a reação de muitos rubro-negros.
Quando não traem um sorriso cúmplice, aqueles de canto de boca, se empenham em espalhar anedotas em que Sávio aparece como um fraco, um pusilânime incapaz de dotar-se de um punhado de coragem para se impor na vida.
Pois bem: Sávio, novamente, não jogou domingo e, aos 22 anos, já parece um homem cansado do seu ofício.
Mais precisamente, cansado de apanhar.
Talvez mais cruel do que a virulência que transformou as dores em seu tornozelo esquerdo num drama crônico seja a ululante inversão de papéis no Sávio do imaginário popular.
Os do contra se divertem, ao apontá-lo como um covarde. Os do pró se incomodam e ironizam suas ausências.
Na síntese do que pensam uns e outros, Sávio deixa de ser a maior vítima da truculência irracional que corrói o futebol brasileiro para ser culpado.
É óbvio que ele tem o que aprender, aprimorar, inclusive na malandragem indispensável no manual de sobrevivência na selva da deslealdade.
Mas, se cai demais, é porque apanha ou já desenvolveu mecanismo subconsciente de defesa, de tanto levar pontapé.
Como deixar de driblar, se foram seus dribles surreais que o levaram à seleção, a ser apontado como herdeiro de Zico e a receber, semanas atrás, propostas por escrito de dois clubes espanhóis, Barcelona e Tenerife?
Se fica fora do time é porque não consegue se recuperar da sucessão de agressões e de jogos. A propósito, o que é mais difícil suportar?
Não está em questão se Sávio tem méritos para jogar a Copa da França e, quem sabe, ser titular. Esse é outro papo.
O que causa impressão, mesmo num país onde muitos têm Leonardo Pareja como herói, é apontar covardia em quem, apesar do furor dos marcadores, ousa, como um insano, brindar o futebol com a orgástica iguaria do drible.
A inversão imagética de Sávio poderia ser apenas um objeto sedutor para livres-pensadores do planeta futebol.
Mas, ao apontá-lo como um medroso consumado, não se corre o risco de legitimar, mesmo involuntariamente, os que tentam barrar na marra, e sem escrúpulos, os seus atrevimentos diabólicos?

Matinas Suzuki Jr., que escreve às terças, quintas e sábados, está em férias

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