São Paulo, terça-feira, 24 de setembro de 1996
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Eu sou um leãozinho que ainda não morde

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Tenho quatro anos de idade e estou na altura dos escapamentos dos carros. Sou um menino-mendigo, um menino "excluído", como dizem agora. O termo "excluído" é mais higiênico, provoca menos culpa, como se fala de um carro fora de linha. Sou, portanto, um menino excluído. Ando até meio excluído dos noticiários -bons tempos, os dos massacres, quando eu virei notícia, fonte de horror. Agora, a mídia se acostumou.
Se é que posso falar sem ironia, meu ponto de vista do mundo é privilegiado. Tenho uma imensa liberdade: tudo é meu na cidade e ao mesmo tempo não é. Como não estou em lugar nenhum, vejo tudo. Como não existo socialmente, sou um par de olhos sem corpo, uma espécie de turista (ahh ahh, ironia de novo), um par de olhos turistas sobre um mundo que não habito.
Minha vida é um grande playground, onde eu só posso brincar de fora: fora da vitrine, da loja, da padaria. A vitrine é o lugar das coisas que eu não posso ter. Seria eu uma espécie de realidade virtual? Isso. Minha existência é formal, apesar de minha carne e meus ossos.
Não estou na paisagem. Sou apenas um contraponto que reafirma a vida real dos outros, ou, para os revoltados, uma contradição que mostra que a vida deveria mudar. De algum modo, sou útil. Nem sei que sou infeliz. Para mim, minha vida é normal. Os outros é que se sentem anormais na minha presença. Eu não tenho pena de mim mesmo; por isso, os outros ficam tão culpados.
Minha liberdade é em cinemascope, 360 graus: os outros vêem em monóculos. O filme é todo meu, só que eu não posso entrar na tela. Eu assisto a um filme dentro da ação, só que não consto do elenco.. Eu, excluído, sou como um intelectual: vejo o conjunto.
O mundo é todo meu. As pessoas preferiam que eu não existisse. Percebo isso com encanto, quando sou expulso de uma loja, ou quando ignoram minha presença. Eu percebo que estrago a festa. Eu sou o Outro total, o Outro completo, tão "outro", que não posso ser visto. Não tenho espelho, nada me reflete.
Mas eu inquieto. Por que? Porque a infância é para todos o paraíso das recordações doces. "Ahh, a aurora da minha vida", dizem todos. Eu estrago a aurora das vidas. Sou um ruído em Proust.
Às vezes, se abre um buraco de luz onde ando. Quando há uma família com filhinhos, papai e mamãe na porta da padaria, vou andando e fico bem perto deles. É uma maneira de ter uma família, só que "de fora". Sou um anti-irmãozinho. Os filhos me olham, espantados. Os pais então têm de "explicar" minha existência aos filhos.
Explicam por que eles não são como "eu", que é a versão social sobre mim. Ou então, por que eu não sou como "eles", o que seria o discurso político. Mas em geral os pais se afastam, pálidos. Eu sou um panfleto pós-utópico, sem esperança.
Percebo também que, como sou pequeno, fraquinho, sou uma espécie de antineném. Algumas mulheres têm vontade de me abraçar, me botar no colo. Mas não têm coragem. Eu crio nelas a crise de quererem beijar alguém que lhes dá medo, ou que dará.
Por enquanto, eu sou um leãozinho que ainda não morde. Além disso, já pensaram nas consequências políticas desse gesto? Tudo começaria no beijo e criaria uma cadeia de implicações que ameaçaria a ordem social.
Como não vêem, eu só vejo o que ninguém quer ver. Uma sociedade alternativa que queima por baixo dos pés, vida sem futuro ou passado, só um presente enorme, noites e dias, sem tempo.
Eu tenho a grande cultura dos detritos, os fragmentos do meio-fio, a fome dos ratos, as pernas dos aleijados, o medo dos pés que passam à minha altura; mas tudo isso sem nenhuma visão crítica, como teria um filósofo da USP. Não tenho projetos ou opções. Melhor dizendo, tenho, mas são projetos claros: "Mais tarde é a hora de o português despejar o lixo da lanchonete" ou "quem roubou minha latinha?"
Eu diria que sou um "pragmático". Um materialista, não-dialético. Nem quero entrar na sociedade de vocês, tampouco. Tenho minha própria ordem. Conheço os bueiros quentes e os frios, os mendigos legais e não, os grandes ovos podres, os "Humpty-dumpties" sujos das ruas, os viados assassinados, as regras do jogo da morte e da vida sem tragédia nem dor; eu sou vivido, do alto dos meus quatro anos.
Eu sou vanguarda. Uma espécie de contracultura dos 90. Eu não tenho muito a aprender com vocês. Vocês têm a aprender comigo. Sem contar a lição existencial que dou: a solidão, a convivência com o não-sentido, sentimento beckettiano do absurdo da vida, do nada e do ser.
E funda-se, a partir de mim, uma nova "ratio" política também: a "razão do excluído". O "discurso lúmpen" que, depois do discurso proletário, ilumina a ausência de horizontes do mundo.
O proletário foi o herói moderno. Eu, o "lúmpen", sou o herói pós-utópico. A partir do meu nada, podem recomeçar a pensar, como eu penso. Eu sou a prova da falência do sujeito. Sou um "descentrado", eu sou um texto sem significado, eu sou "dadá", sou um "reificado" sujo, tão ao gosto da escola de Frankfurt.
Tenho muito a ensinar: esperança zero, o uso intensivo das parcialidades (trapos velhos, restos de pão, lixo da lanchonete). Ensino uma lógica aistórica. Ensino a arte de viver nas frestas do mercado (ou das feiras). Ensino a arte de aproveitar cada migalha de vida, cada nicho de rua; ensino economia informal.
Tenho um pensamento não totalizante. Não tenho grandes rasgos ideológicos. Ensino o aproveitamento dos desperdícios, a diminuição do "custo Brasil" (eu sobrevivo com pouco, eu sou uma microempresa). Eu sou a arte de administrar o dia-a-dia com poucos recursos. Sinto um amor poético pelas mixarias brasileiros: a paz de um domingo, o silêncio das madrugadas, a beleza das sarjetas dionisíacas e os restos de empadas dos botequins.
Não ligo para o "Primeiro Mundo"; mantenho viva uma tradição brasileira de pequenos gestos pobres, heranças escravistas, permanências de misérias seculares, o cestinho, a latinha, o saco, o amor ao baldio e portas de igrejas. Eu sou cultura brasileira também.
O Brasil tem muito a aprender comigo.

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