São Paulo, terça-feira, 24 de setembro de 1996
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Em defesa da defesa

JOSÉ ROBERTO BATOCHIO

A se continuar pregando contra o direito de defesa, ainda teremos de invocar a Lei de Proteção aos Animais
Violência e criminalidade sempre constituíram grave ameaça à estabilidade da sociedade humana e, por isso mesmo, têm sido objeto de sua constante preocupação. É que a sociedade organizada se rege por normas fundamentais, merecendo reprovação o ato que as infringe, porque nega valores essenciais e compromete a paz da convivência entre os homens.
Inseparável da vida gregária, a criminalidade tem de ser prevenida e reprimida pelo Estado, em caráter permanente e por meios legítimos e civilizados. Não é aceitável, porém, a falácia do uso de métodos radicais, supostamente aptos a extirpar, cirurgicamente, a chaga do crime do corpo social.
A conduta desviada tem se mostrado comportamento do homem comum em todo registro histórico da aventura humana sobre a Terra. Crime e violência, contrariamente ao que martelam diariamente determinados setores da mídia -que podem envenenar a opinião pública-, não são fenômenos exclusivos dos tempos que vivemos. É manifestação fenomenológica sempre proporcional à densidade demográfica, à concentração de rendas, aos contrastes sociais etc.
Na sua obra "A Sociedade Justa", recentemente publicada no nosso idioma, o economista John Kenneth Galbraith assinala: "Quando as pessoas estão desempregadas, economicamente destituídas e sem esperanças, o recurso mais prontamente disponível é fugir da dura realidade mediante drogas ou violência. A manifestação prática é o crime e a revolta, acompanhados por tentativas inúteis de repressão".
O jurista Nelson Hungria afirmava que "o crime anda à ilharga da sociedade", suscitando a correta perspectiva de que cabe a todos combatê-lo, mas sem a ilusão de erradicá-lo por completo. Já será satisfatório reduzi-lo a patamares mínimos, toleráveis, o que é o melhor de todos os possíveis.
Na onda da indignação coletiva -e justa- contra o atual surto de violência, no entanto, trafegam alguns exageros.
Desde as inócuas propostas de prisão perpétua, pena de morte e quejandos, até a efetiva supressão de garantias políticas, de índole processual penal -endereçadas a todos nós cidadãos, por necessitarmos de proteção contra o arbítrio-, observa-se, com preocupação, a marcha do sentimento coletivo em direção a caminhos perigosos.
Convém sempre ter presente que o autoritarismo jurídico é primo-irmão do autoritarismo político...
Até a defesa dos réus nos processos criminais, que é tarefa específica do advogado, tem sido questionada. Não falta mesmo quem associe esse direito/dever da defesa técnica criminal -direito do acusado e dever da sociedade- à impunidade e ao aumento da criminalidade. A própria figura do advogado de defesa tem sido posta em cheque, esquecendo-se todos de que condenação sem defesa é a maior de todas as heresias da justiça humana.
A se continuar pregando contra o direito que todo acusado tem de ser ouvido e de se defender -qualquer que seja o seu crime-, como mandam a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Constituição e as nossas leis de processo, será que, na defesa de alguém acusado de crime grave, ainda teremos de invocar a Lei de Proteção aos Animais, como um dia fez o grande Sobral Pinto?
Embora culpado, não merece o réu um julgamento legítimo, justo e uma pena dentro dos limites da lei?
Recentemente, certa entidade que congrega advogados criminalistas teria recomendado a seus associados que não patrocinassem a defesa de acusados de crimes de alta reprovabilidade. Custa crer que entre causídicos, sobretudo os de especialidade que tal, pudesse ser cogitável tal exortação!
Se, no plano moral, há o dever de caridade -mesmo com os que se mostraram impiedosos-, e todas as leis divinas e humanas determinam respeito ao réu, a defesa criminal é um direito constitucional de qualquer acusado.
Não deve e não pode o advogado de defesa ser juiz do ato praticado por aquele que é chamado a patrocinar. Esse não é o seu papel sob o prisma jurídico e institucional, nem do ponto de vista humano. A sociedade civilizada lhe impõe o dever de dar defesa técnica ao acusado, qualquer que seja o crime, repita-se, sem que isso signifique que esteja solidário com a prática delituosa.
Não anular o ser humano que habita naquele que praticou o crime, eis a regra cristã e deontológica que se impõe. Numa palavra: cabe reprovar o pecado sem odiar o pecador.

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