São Paulo, quinta-feira, 26 de setembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O abade Mário Palmério

JOSÉ SARNEY
COLUNISTA DA FOLHA

Mário Palmério deixa poucos livros. Mas ninguém leva -já se disse- na viagem da morte, mais de um livro. O seu é "Vila dos Confins". Escrito sem grandes pretensões, guardava na sua unidade a revelação do coronelismo, da peregrinação da política, onde ela é mais uma forma primitiva de querer mandar do que a arte do bem comum.
Eu era seu companheiro na Câmara dos Deputados quando explodiu sua revelação literária. Rachel de Queiroz avalisava seu estilo diferente, leve e singular, num prefácio em que dizia do grande escritor descoberto. Não era um Guimarães Rosa, angustiado pelas palavras, mas um mestre na arte de captar o ritmo da língua, a vida que escorria das frases no jeito malicioso de contar histórias.
Em "Chapadão do Bugre" não conseguiu chegar ao sucesso do primeiro livro, mas manteve a fidelidade ao seu estilo, que tem um lugar especial na história da literatura brasileira.
Mário Palmério era um homem de uma personalidade incapaz de ser reinventada pelos seus livros. A morte, com grande egoísmo, carrega consigo tudo o que era o prazer de viver com o testemunho da sua vida. Era um contador de histórias como ninguém. Um boêmio intelectual, para quem a literatura constituía uma coisa secundária. Seu gosto pelo trabalho era o gosto do mundo, escondido nas milhares de personagens e "casos" que inventava e sonhava. Sonhou, por exemplo, vestir uma batina de abade viajante e construiu sua embarcação- o "Marquês de Carvalhal"- e durante nove anos navegou os rios e igarapés da Amazônia, dizendo que buscava a solidão para pesquisar e escrever os livros que jamais escreveria e as pesquisas que nunca fez. Seu lugar predileto, ali, era a sala acanhada em que estava o seu piano, onde tocava e cantava, no mistério daquelas florestas e águas, as modinhas de Minas Gerais e as guarânias paraguaias. Fui visitá-lo, cabeleira branca, impecável gravata borboleta, aquele sorriso do tamanho da bondade e da simpatia.
- Qual é o segredo, Mário, de você continuar vagando aqui, longe de tudo, envolto na saudade dos seus amigos?, perguntei-lhe.
- Sarney, você não sabe que a minha força e o meu mistério é que mudo de "tripulação" em cada porto destes confins verdes. E como são bonitas...
Escritores deixam grandes obras, eternizam-se através delas. Com Mário fica a "Vila dos Confins", mas morre com ele o que era ele, só ele, nada parecido. A figura humana, o talento, a simpatia, o gosto da convivência e dos amigos.
Junto ao Criador ele pedirá perdão dos seus pecados, mas vão ser bem mais agradáveis as noites no Céu com Mário Palmério contando de como as indiazinhas e as caboclas da Amazônia cheiram todos os cheiros bons que não se vendem nas perfumarias de Paris.

Texto Anterior: MTV mostra Madonna nos bastidores do filme "Evita"
Próximo Texto: REPERCUSSÃO
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.