São Paulo, quinta-feira, 26 de setembro de 1996
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Romance familiar

OTAVIO FRIAS FILHO

Os psicanalistas usam uma expressão -romance familiar- para as fantasias que a criança tece em torno do seu ambiente mais primitivo, a relação com a mãe e o pai. O romance familiar exerce um peso terrível em todas as fases da vida, nele estariam contidas as debilidades, as contradições, o próprio destino da pessoa.
Se as nações têm, tanto quanto os indivíduos, o seu "romance familiar", o nosso está no recém-publicado "D. João 6º no Brasil", de Oliveira Lima. Um desses clássicos hoje desconhecidos, lançado em 1908, o livro teve visível influência sobre os analistas da nossa formação nacional, especialmente Gilberto Freyre.
Seu assunto é um despautério histórico-geográfico: a crônica de como uma corte européia se deslocou de armas e bagagens oceano afora, tangida pelo canhoneio às portas de Lisboa, até os trópicos. É um caso único em toda a história, oportunidade preciosa para reconhecermos nossa imagem mais arcaica e profunda.
Os críticos ressaltam a habilidade antropológica de Oliveira Lima, patente na descrição luxuriosa das procissões e festas da realeza, onde ele registra a origem do Carnaval carioca. Como historiador, Oliveira Lima adota um tom mais oficial, sempre interessado em mostrar d. João como estadista em vez de palhaço.
Mas o paradoxo dos fatos aparece nítido em meio ao estilo difícil, espinhoso, do autor. A transmigração (1808) da família real inverteu as posições entre metrópole e colônia. Desviou o Brasil do curso republicano que vinha esboçando e atrofiou o conflito colonial entre nós, enquanto estimulava o radicalismo em Portugal.
Em artigo recente sobre o livro, o historiador Boris Fausto assinalou ter sido isso o que fez da Independência a primeira de uma longa série de "transições transadas", como a Abolição e a República, para não mencionar as do século atual. Ali tudo começou a terminar em pizza, como gostamos de dizer hoje.
O deslocamento do Estado europeu para uma sociedade incipiente, "despreparada" para recebê-lo, gerou um surto de furiosa modernização, que Oliveira Lima relata com entusiasmo. Mas sufocou essa sociedade, ao mesmo tempo, com a sua "pesada túnica", na expressão de outro historiador, Raymundo Faoro.
A força de atração do governo (cargos, privilégios, isenções fiscais, honrarias) gerou uma sociedade à sua semelhança, onde o radicalismo era quase sempre mera válvula retórica para expressar alguma pretensão inatendida. Fixou-se uma estrutura hierárquica definida pela proximidade pessoal com o grupo governante.
Intimado a voltar como refém a Lisboa, o rei disse ao filho que pusesse a coroa na cabeça. Independência era continuísmo, a revolução era feita pelo próprio governo, o "povo assistia a tudo bestificado". Só o fato de ainda estarmos às voltas com esse "romance familiar" já recomenda o livro de Oliveira Lima.

"D. João 6º no Brasil", Oliveira Lima, Topbooks, 790 págs.

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