São Paulo, sexta-feira, 27 de setembro de 1996
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Modernização à esquerda

LUÍS NASSIF

O livro "A Federação em Perspectiva, Ensaios Selecionados" (Fundap, organização de Rui de Britto Álvares Affonso e Pedro Luiz Barros Silva) é relevante pelo tema. E por expor o pior e o melhor do pensamento de esquerda atual sobre o assunto.
O pior está no lengalenga interminável sobre neoliberalismo, visão conspiratória da história e saudosismo inconformado em relação a formas mortas de intervenção do Estado na economia.
O melhor está no ensaio de José Luiz Fiori, mostrando pela primeira vez um pensador claramente identificado com as esquerdas que entende a inevitabilidade e a dinâmica de uma economia globalizada.
Fiori identifica quatro formas complementares de descentralização federativa: a transferência de poderes do Estado central para novas instâncias administrativas autárquicas do próprio governo central, para instâncias de poder subnacionais (Estados e municípios), para organizações de sociedade civil e para empresas privadas.
Em um modelo democrático, não há por que dividir a descentralização em "formas de esquerda" (tipo SUS) e "formas de direita" (tipo privatização).
Ambas significam diluição de poder e novas maneiras de controle da sociedade civil sobre o Estado.
Outro ponto relevante é que a federalização deve se fazer tendo como foco a solução de problemas práticos.
Fiori cita trabalho de W. Riker, para quem "a constituição federalista que ali nasceu (da Convenção de Filadélfia) resultou de um esforço para resolver problemas práticos de maneira oportunista", sem preocupação em importar experiências estrangeiras ou se perder em teorizações.
Para a tradição luso-cucaracha-bacharelesca de nossas universidades, deve soar como sacrilégio essa objetividade fria de mercador.
Negociação permanente
Fiori identifica no federalismo uma permanente tensão e desarmonia entre as partes, mas "que é motivo de uma negociação que passa a ser permanente e cujos produtos serão sempre arranjos institucionais transitórios".
Para quem não acompanha de perto a literatura engajada, tais afirmações podem soar banais. No plano do pensamento das esquerdas brasileiras, trata-se de uma revolução.
A capacidade de negociar permanente e objetivamente cada nova situação é a marca mais extraordinária das modernas economias de mercado.
Pactos entre empresas, entre empresas e trabalhadores, entre acionistas e diretoria, cada parte tendo clareza sobre seus próprios interesses, confiança na palavra empenhada e entendendo que negociações podem ser objetos de ganhos recíprocos, conflitam extraordinariamente com a tradição burocrática e patrimonialista brasileira.
Mais ainda com a tradição da esquerda convencional, que só se sente confortável tendo todos os fatores sob controle estrito.
Globalização
No ponto em que federalismo se confunde com globalização, Fiori procede a uma (auto?) crítica do debate em torno do tema.
"O problema é que o conceito muitas vezes escorrega para o plano ideológico e aí aparece comprometido com visões às vezes conspiratórias, às vezes excessivamente otimistas e ingênuas."
O que se entende como globalização "é uma nova e desafiante realidade (...), que foi sendo gerada por uma interação dinâmica de decisões micro e macroeconômicas e políticas tomadas, em nível das empresas e dos governos, quase sempre sob a forma de resposta aos grandes "choques" que se condensaram nos anos 70, 80 e 90".
Ufa! Para quem conhece o meio, essa aceitação do óbvio é um ato de coragem e de independência intelectual.
Se aceita e entende a nova realidade como "rigorosamente irreversível", falta a Fiori familiaridade maior com os princípios de reorganização da poupança, com a estratégia das transnacionais, para formular uma proposta eficaz para a ação dos Estados nacionais.
Mas é questão de tempo. Amadurecido o diagnóstico correto, as propostas surgirão no momento seguinte.
Miséria?
Apenas no fecho do artigo, Fiori paga o óbolo para a velha esquerda, quando diz que é muito prováve

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