São Paulo, sexta-feira, 27 de setembro de 1996
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"Fenômeno" contra-ataca ETs com Nietzsche

LÚCIO RIBEIRO
EDITOR-ASSISTENTE DA ILUSTRADA

"Fenômeno", que estréia hoje em São Paulo, chegou aos cinemas dos EUA em julho disputando espaço nas poucas salas americanas que não estavam exibindo o blockbuster "Independence Day".
Mesmo na contracorrente da ufomania ditada por Hollywood, o novo filme de John Travolta impôs logo na terceira semana de exibição um surpreendente segundo lugar nas bilheterias, oferecendo ao espectador, em vez de ETs e naves espaciais, uma historinha devagar, personagens jecas e uma discussão nietzschiana.
O diretor Jon Turteltaub ("Enquanto Você Dormia") botou Travolta na pele de George Malley, um cara boa gente que leva a vida em uma dessas cidadezinhas encravadas no interior americano.
A passagem de Malley pela Terra se resume ao seu trabalho como mecânico, a sua plantação de alface no quintal de sua casa e ao amor, não correspondido, que nutre por uma fracassada carpinteira (Kyra Sedgwick).
Até que, numa bela noite, a do seu 37º aniversário, o personagem de Travolta olha para o céu estrelado e cai duro ao ser fulminado por uma cintilante luz branca. E aí baixa Nietzsche na vida de Malley.
Ao se levantar da queda, o pacato ser percebe que virou uma espécie de super-homem. Sua memória se tornou excepcional, sua percepção ficou infinitamente mais aguçada.
Malley agora prevê terremotos, é capaz de aprender a falar português fluentemente em 20 minutos e ganha todas as partidas de xadrez que joga com o médico da cidade (Robert Duvall). E também não consegue mais dormir -para o super-homem de Nietzsche, dormir é distrair-se do mundo, desligar-se das coisas que acontecem.
É a partir daí que "Fenômeno" rompe explicitamente com a febre extraterrestre e inverte a máxima de que a verdade está lá fora. O que o diretor Turteltaub mostra é que a verdade, na verdade, também está lá dentro, na mente humana.
O filme revela que a luz que derrubou Malley não veio do espaço, mas sim de uma consequência visual causada por um desconhecido tumor que tomou conta de seu cérebro e estranhamente lhe conferiu superpoderes.
Malley vai querer, a partir de então, buscar dentro dele próprio as respostas para suas dúvidas. Saber o que está dentro dele que o torna um super-homem. O que é aquilo que o mantém em sintonia com a natureza e com os objetos -Malley consegue mover canetas ou virar páginas de um livro sem tocar em nada.
Problemas existenciais à parte, "Fenômeno" gerou críticas negativas por parte da imprensa americana, que apontava um antiintelectualismo pregado pelo filme.
Tudo porque o Malley, à medida que mostrava sua inteligência sobrenatural, ia sendo considerado cada vez mais um sujeito estranho na cidade.
Como se ler dois livros por dia ou passar em testes de QI fossem coisas para bobos.
Esse problema em parte foi amenizado pela atuação de John Travolta, que emprestou charme e simpatia ao seu personagem nas duas fases de Malley: quando era um simples caipira e quando fazia as vezes de superdotado.
Mas a verdade é que, fora o problema de Malley, que torna agradável o filme em grande parte de sua duração, "Fenômeno" sucumbe ao sentimentalismo piegas de suas histórias paralelas, graças muito à atuação inócua de Kyra Sedgwick, o par romântico de Travolta.
Em especial aos brasileiros, o filme reserva ainda um quê de comédia, quando uma certa situação exige que os personagens falem português.
A situação fica tão engraçada que constrange qualquer discípulo da língua de Camões, que precisa de legenda mesmo nas falas dos "portugueses" do filme.

Filme: Fenômeno
Direção: Jon Turteltaub
Com: John Travolta, Kyra Sedgwick, Forest Whitaker, Robert Duvall
Quando: a partir de hoje nos cines Astor, Eldorado 2, Metrópole e circuito

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