São Paulo, sexta-feira, 3 de janeiro de 1997
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"Shine" explora jornada de pianista

ADRIANE GRAU
ESPECIAL PARA A FOLHA,

em San Francisco
Para contar a história do talentoso pianista David Helfgott em "Shine", o diretor Scott Hicks passou quase dez anos batendo à porta de investidores que garantissem os US$ 4,5 milhões necessários para o projeto.
"Se todo filme levar tanto tempo para ser realizado, só vou fazer uns três ou quatro em minha vida", afirma o cineasta, em tom brincalhão.
O australiano de 42 anos já havia se acostumado ao sucesso com seus documentários quando "Shine" impressionou a seleta audiência do Sundance Film Festival em janeiro deste ano.
Enquanto a platéia se levantava para aplaudir, o tranquilo Hicks vislumbrava os bons frutos a colher. "Após duas sessões em Sundance, o filme já tinha conseguido quase 100% de retorno do investimento", lembra ele.
Ele conversou com a Folha no Ritz-Carlton Hotel, em San Francisco, antes de o filme ser mostrado em Los Angeles e constar na lista de apostas de indicados para o Oscar.
*
Folha - Como escolher o que mostrar e o que ignorar numa história como a de David Helfgott, tão cheia de detalhes?
Scott Hicks - Passei o maior tempo possível ao lado de David para descobrir tudo a seu respeito, para senti-lo melhor.
Sei que poderia ter feito quatro ou cinco filmes diferentes. Apenas tive que ser seletivo e capaz de condensar diferenças para contar a história.
Folha - Tendo feito tantos documentários, como foi passar para a ficção?
Hicks - Mesmo em documentários, há que se manipular a informação ao escolher para onde voltar a câmera. Claro que em ficção há um roteiro, uma sequência de idéias pré-ordenadas, e os atores tem que ser dirigidos. Mas não vejo uma divisão, encaro ambos da mesma forma.
Folha - Chegou a pensar em mostrar a vida de David Helfgott num documentário?
Hicks - Haveria dificuldades. Por exemplo, o pai dele, que é um dos protagonistas, já morreu. Além disso, eu estaria preso à precisão dos fatos em vez de à poesia e à jornada emocional, que é o que quis dividir com o público. Haveria também risco de expor algumas pessoas sob uma luz que elas preferem evitar.
Folha - Você começou o projeto ao vê-lo em concerto?
Hicks - Sim. O que me atingiu foi encontrar alguém que passou por uma vida fragmentada e caótica e vê a luz no fim do túnel, recuperando sua habilidade de fazer música e ser feliz. Foi isso que me conquistou.
Folha - Seus outros dois filmes também tiveram tanta influência emocional sobre o público?
Hicks - Meu primeiro filme foi escrito por outra pessoa e era um projeto mais adolescente. Mas no segundo, sim, pois escrevi e dirigi de maneira autoral.
"Sebastian and the Sparrow" é sobre dois meninos, um rico e outro pobre, que trocam de vida e saem em busca da mãe de um deles. Há uma resolução emocional e é uma jornada, também.
Folha - Como você teve a idéia de escrever aquele roteiro?
Hicks - Meu filho mais velho estava entrando na adolescência e fui percebendo que ele tinha uma vida privada, cheia de segredos que não me diziam respeito. Para os pais é um período de isolamento e mistério, e tentei acomodar a idéia.
Só agora percebo o paralelo entre os dois filmes, pois para mim "Shine" é a respeito de um pai que não quer deixar o filho crescer e se libertar.
Folha - Como descobriu Geoffrey Rush para o papel principal?
Hicks - Conhecia seu trabalho e o vi no palco várias vezes desde os anos 80. Quando me encontrei com ele fiquei impressionado com suas mãos, tão belas e que são parte importantíssimas na trama. Nem fiz teste, pois sabia que o papel tinha que ser dele.
Chegaram a me oferecer financiamento completo se desse o papel a um ator famoso. Manter Geoffrey me custou mais dois anos tentando achar investidores.
Folha - Como conseguiu dinheiro da Pandora, da BBC e do Australian National Endowment for the Arts?
Hicks - A Pandora logo de cara se comprometeu bastante. Pagou quando o filme foi entregue, mas seu compromisso abriu as portas de financiadores e garantiu o fluxo de caixa que manteve o processo em andamento. A BBC deu pouco dinheiro e quase pôs tudo a perder. O governo australiano ajuda todos os filmes feitos no país.
Folha - Você acha positiva a colaboração do governo no cinema australiano?
Hicks - Se o governo parasse de subsidiar o cinema, seria o fim dessa arte no país. Fora de Hollywood, todos os cineastas dependem do governo. Na Austrália, o governo tem tido ajuda constante nos últimos 20 anos e garantiu a construção da indústria de filmes no país.
Tenho algumas críticas apenas à maneira como os recursos são manipulados. Antes havia incentivo fiscal para quem investisse em cinema.
Mas o processo se tornou corrupto e foi mal explorado, com contadores e advogados embolsando milhões para produzir filmes de péssima qualidade.
Foi aí que o governo criou o Film Bank, que é a única porta em que se pode bater. Penso que isso impede a diversidade. Eu preferiria que eles remodelassem a lei do incentivo fiscal.

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