São Paulo, domingo, 5 de janeiro de 1997
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Arantes ironiza turma do 'a favor'

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na forma e nos assuntos, o "Diccionario de Bolso do Almanaque Philosophico Zero à Esquerda", do qual o Mais! publica alguns verbetes (a edição integral sairá em março na revista "Praga"), é um desdobramento do "Fio da Meada", livro que Paulo Arantes lançou no ano passado.
Lá, na forma de uma conversa, o autor, professor do Departamento de Filosofia da USP, pretendia "dramatizar" a vida intelectual brasileira atual, tendo como pano de fundo o que ele chamou de "processo de desintegração nacional", mais conhecido como "ajuste nacional às atuais exigências do capitalismo, que nos levará à tão almejada modernidade".
O problema de Paulo Arantes era (continua sendo) o seguinte: o ajuste econômico tem uma contrapartida intelectual, e é preciso medir o seu alcance.
O personagem central desse "ajuste intelectual" (a turma que era "do contra" e hoje é "a favor") é o filósofo José Arthur Giannotti, amigo de FHC e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), que, depois de ser considerado por quase 20 anos por todo o mundo como o "maior filósofo marxista brasileiro", teria abandonado não só o seu Marx todo particular, mas com ele a crítica ao capitalismo.
"O Fio da Meada" foi acusado de quase tudo. O próprio Giannotti, em artigo publicado em novembro no jornal "O Estado de S. Paulo", intitulado "A Beca Chifruda", qualificou o livro de "miada subjetiva" e disse que Arantes era "pior que ACM". Um outro artigo afirmava que Arantes era o inventor de um "novo emplastro", que, ao contrário do invento de Brás Cubas, incapaz de aliviar a nossa miserável condição, tinha como função "consolar uma imensa prole de deserdados".
Houve, além disso, muita conversa pelos corredores da USP e alguns outros comentários dispersos pela mídia. Um livro muito comentado que passou despercebido, na avaliação do autor.
Como não havia o que "responder" e, além do mais, aderir à forma da polêmica convencional seria apenas "tocar o serviço", banalizar um assunto que havia sido tratado num nível formal do qual não poderia mais retroceder, Arantes decidiu que teria que "dar um passo adiante", sem o que não faria sentido intervir no debate público. Seria irrelevante.
Passo adiante que, segundo ele, será confundido com uma "manobra circense", como se estivesse condenado de agora em diante a fazer sempre uma pirueta diferente, cada vez mais radical, para ser aceito pelo "showbizz".
O risco de que o "Diccionario" seja considerado coisa de "piadista", digna de um "Paulo Francis da filosofia brasileira", é inevitável. Na medida em que complica a vida dos outros, Arantes também vai complicando a sua.
Em que consiste, então, o "Diccionario"? Segundo o autor, naquilo que, em bom hegelianês, chama-se "ironia objetiva". O principal procedimento de Arantes foi o de abrir o seu arquivo de jornais e recolher frases de intelectuais (Giannotti é a principal vítima, mas não, segundo o autor, por razões pessoais, e sim por encarnar de forma privilegiada um processo em andamento), políticos e jornalistas, dispostas em forma de verbetes que remetem uns aos outros e formam uma constelação.
Arantes descontextualiza trechos e frases para recontextualizá-los. Ou, dito como se deve, recolhe frases do contexto original para colocá-las no seu "real contexto", que estava envolto na cortina de fumaça da mídia. O autor pretende agir como quem põe uma lupa em certas "barbaridades" que passaram despercebidas, não porque seriam inacessíveis, mas porque eram visíveis demais.
O título do texto de Arantes faz alusão ao "Dicionário de Bolso" de Oswald de Andrade. Mas não se trata de reeditar o piadismo da virada modernista, ao qual Arantes, herdeiro da linhagem crítica que começa no crítico Antonio Candido e continua em Roberto Schwarz, sabe que não se pode voltar impunemente. Sobre o "fio vermelho" que une os dois, Arantes escreveu o livro "O Sentimento da Dialética".
Hoje, os filhotes "do contra" de Candido encontram-se no que eles chamam de "rive gauche" paulista, numa pizzaria (veja foto à esq.), no bairro Pinheiros, consagrada como "muzzarela marxista".
O gênero praticado pelo autor no "Diccionario" é a sátira, como indica no texto a epígrafe de Horácio, que significa algo como "tem feno nos chifres". Na Roma antiga, os touros bravos eram identificados por chumaços de feno que carregavam nos chifres. Os sátiros eram considerados "touros bravos", dos quais era prudente não se aproximar.
Há, é claro, outras fontes de inspiração. A mais evidente delas é o "Dicionário das Idéias Feitas", de Flaubert, parte do romance "Bouvard e Pécuchet".
O polemismo de Karl Kraus, que descreveu o funcionamento da sociedade austríaca em que viveu pinçando aqui e ali as suas manifestações mais epidérmicas, também comparece. Mas há sobretudo uma lição de Bertolt Brecht pontuando o texto: para desmontar alguém, basta que se lhe dê a palavra e faça-o falar, falar, falar, falar.

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