São Paulo, domingo, 5 de janeiro de 1997
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Histórias de viço e velhice

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

São bem escritos e de particular sensibilidade os contos inseridos em "A Grande Marcha do Coronel Baldomero Sampaio", de Márcia Guimarães.
A primeira parte do livro é dominada pelo conto que lhe dá o título. Septuagenário, o exilado Sampaio deixa Paris e volta ao Brasil para organizar no coração do país, com ex-companheiros, uma guerrilha tresloucada, fadada desde o início ao fracasso.
Forma-se uma espécie de Exército de Brancaleone, com integrantes loucos ou deficientes, prostitutas, militares reformados, sem pacto nem ideologia definidos; "carregando o peso da glória ainda não conquistada", erguem-se, todos eles, dispostos a enfrentar qualquer inimigo. E enfrentam mesmo.
Como Euclides da Cunha em "Os Sertões", embora de modo bem mais sintético e menos rebarbativo, a autora narra esses confrontos com detalhes assustadores.
Ela afirma: "Resistiram, os homens do coronel Baldomero Sampaio, muito tempo. Lutavam como bichos, o instinto afiando garras. E um por um foi fertilizando o pântano com seu sangue empestado de vermes e bravura".
A segunda parte do livro é composta por "O Idiotíssimo", pequena comédia cujo protagonista é um ministro elevado à pasta da Fazenda por obra de um "acaso" e que, por ser honesto, vira uma pedra no sapato do governo. Sem grandes pretensões, é um conto gracioso, quase ingênuo.
É na terceira e última parte do livro, porém, com três histórias curtas e intimistas, que Márcia Guimarães demonstra maior potencial e uma sensibilidade aguçada para escancarar de modo próprio, autoral, certas feições de seus personagens.
Na primeira delas, um escritor famoso e consagrado põe-se a revisar a sua vida aos 83 anos -e não gosta muito do que vê. "Fui apenas um bebedor comum e falastrão", afirma a certa altura. "A virtude nunca foi o meu forte", diz em outra parte, parodiando Paul Valéry ("A burrice nunca foi o meu forte").
"Pas-de-deux", o melhor conto do livro, vem em seguida, contando a vida de Bernard e Rosalynd, casal de idosos parisiense, culto e cativante, que cruzou certa vez, num café, com a escritora neozelandesa Katherine Mansfield (1888-1923).
Buscando decifrar o segredo desse casal após a sua morte, a narradora afirma: "Compreendo que restaurá-los em mim é trazê-los novamente à beira do lago e servir-lhes chá, enquanto a brisa agita, de leve, uma gaze lilás. (...) é poder caminhar com Katherine (Mansfield) apoiada em meu braço, sentindo o peso de sua mão bem cuidada e o cheiro áspero de seus cigarros".
Fechando o livro, o conto "Piano, Pianíssimo" aprofunda essa vertente intimista, revelando de modo sutil as angústias de uma professora de piano que disfarça seus problemas diante de uma pequena aluna e cujos olhos "brilhavam como violetas molhadas".
Curioso notar que quase todos os personagens do segundo livro de Márcia Guimarães (ela estreou em 1981, com "O Rabo do Presidente") são pessoas idosas, o que é arriscado.
Afinal, é relativamente fácil sensibilizar leitores quando se adota gente nessa condição como centro de uma história, já que, em princípio, somos todos predispostos a aceitar tudo aquilo que vem da velhice. Mas a autora não cai no emocionalismo fácil.
Seu mérito está justamente em contrapor a essa natural carga emotiva que os personagens trazem consigo um estilo firme e frio, nada apelativo, e em não permitir que a chamada terceira idade combine necessariamente com paralisia ou resignação.
Para convencer um de seus adeptos a partir para o combate, por exemplo, o coronel Sampaio exclama: "A morte nos espera (...). Pois vamos a ela". Viço e velhice -essa fusão inesperada é o que confere robustez ao livro de Guimarães.

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