São Paulo, domingo, 5 de janeiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O mundo reinventado pela ficção

JAVIER MARÍAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Talvez não seja o mais sensato da parte de um escritor que escreve sobretudo novelas confessar que cada vez lhe parece mais estranho não apenas o fato de escrevê-las, mas inclusive o de lê-las.
Acostumamo-nos a este gênero híbrido e flexível há pelo menos 390 anos, quando em 1605 apareceu a primeira parte do "Quixote" em minha cidade natal, Madri, e nos acostumamos tanto, que consideramos inteiramente normal o ato de abrir um livro e começar a ler o que não se esconde que é ficção, ou seja, algo que não aconteceu, que não teve lugar na realidade. O filósofo romeno Cioran explicava que, por isso mesmo, não lia novelas: tendo acontecido tanta coisa no mundo, como poderia se interessar por coisas que nem tinham ocorrido; preferia as memórias, as autobiografias, os jornais, a correspondência e os livros de história.
Se pensarmos duas vezes, talvez não faltasse razão a Cioran e talvez seja inexplicável que pessoas adultas e mais ou menos competentes estejam dispostas a mergulhar em uma narração que, desde o primeiro momento, sabem ser inventada. Ainda é mais estranho se levarmos em conta que nossos livros atuais trazem na capa, bem visível, o nome do autor, com frequência sua foto e uma nota biográfica na orelha, às vezes uma dedicatória ou uma citação, e sabemos que tudo isso é também deste autor e não do narrador.
A partir de uma determinada página, como se com ela se levantasse a cortina de um teatro, fingimos esquecer toda essa informação e nos dispomos a atender a outra voz -seja em primeira ou terceira pessoa- que no entanto sabemos que é, impostada ou disfarçada, a deste escritor. O que nos dá esta capacidade de simulação? Por que continuamos lendo novelas e apreciando-as e levando-as a sério e até premiando-as, em um mundo cada vez menos ingênuo?
Parece certo que o homem -talvez ainda mais a mulher- tem necessidade de alguma dose de ficção, ou seja, necessita do imaginário, além do acontecido e real. Não me atreveria a empregar expressões que acho recorrentes ou ridículas, como seria assegurar que o ser humano necessita "sonhar" ou "evadir-se" (este último, um verbo muito malvisto nos anos 70, diga-se de passagem).
Prefiro antes dizer que ele necessita conhecer o possível além do certo, as conjecturas e as hipóteses e os fracassos além dos fatos, o descartado e o que teria podido ser, além do que foi. Quando se fala da vida de um homem ou de uma mulher, quando ela é recapitulada ou dela se faz um resumo, quando se relata sua história ou sua biografia, seja em um dicionário ou em uma enciclopédia ou em uma crônica, ou conversando entre amigos, costuma-se relatar o que esta pessoa concretizou e o que com ela efetivamente aconteceu.
Todos temos no fundo a mesma tendência, ou seja, a de irmos vendo nas diferentes etapas de nossa vida o resultado e o compêndio do que nos aconteceu, do que conseguimos e do que realizamos, como se fosse tão-somente isso o que conformasse nossa existência.
E quase sempre nos esquecemos de que as vidas das pessoas não são somente isso: cada trajetória se compõe também de nossas perdas e de nossos desperdícios, de nossas omissões e de nossos desejos irrealizados, do que uma vez deixamos de lado ou não escolhemos ou não atingimos, das numerosas possibilidades que em sua maioria não chegaram a se realizar -todas menos uma, afinal de contas-, de nossas vacilações e nossas fantasias, dos projetos frustrados e dos desejos falsos ou débeis, dos medos que nos paralisaram, do que abandonamos ou nos abandonou.
Nós talvez consistamos, em suma, tanto do que somos como do que não fomos, tanto do que pode ser comprovado e quantificado e rememorado, quanto do mais incerto, indeciso e difuso, talvez sejamos feitos em igual medida do que foi e do que poderia ter sido.
E atrevo-me a pensar que é precisamente a ficção que nos conta isso, ou melhor dito, que nos serve de memória dessa dimensão que costumamos deixar de lado na hora de nos relatarmos ou nos explicarmos a nós mesmos e à nossa vida. E ainda hoje é a novela a forma mais elaborada da ficção, ou assim me parece.
Em certo sentido, o livro que o júri do Prêmio Internacional Rómulo Gallegos acaba de premiar tão aventurada e discutivelmente trata disso. No texto que os senhores têm em mãos se diz que "Mañana en la Batalla Piensa en Mi" fala, entre outras coisas, do engano no sentido mais amplo da palavra e se cita uma frase da novela que diz: "Viver no engano é fácil e, mais ainda, é nossa condição natural, e por isso não deveria doer-nos tanto".
É lembrado que todos vivemos parcial, mas permanentemente, enganados, ou antes, enganando, contando somente parte, escondendo outra parte e nunca as mesmas partes para as diferentes pessoas que nos cercam. E, no entanto, aparentemente, não chegamos a nos acostumar a isso. E, quando descobrimos que algo não era como o vivenciamos -um amor ou uma amizade, uma situação política ou uma expectativa comum e até mesmo nacional-, nos aparece na vida real este dilema que tanto pode nos atormentar e que é em grande medida o território da ficção: já não sabemos verdadeiramente como foi o que nos parecia certo, já não sabemos como vivemos o que vivemos, se foi o que acreditávamos enquanto estávamos enganados ou se devemos lançar isso ao saco sem fundo do imaginário e tratar de reconstruir nossos passos à luz da revelação atual e do desengano.
A mais completa biografia, até mesmo a própria, só é constituída de fragmentos irregulares e de pálidos pedaços. Julgamos poder contar nossas vidas de maneira mais ou menos racional e cabal e, quando começamos, percebemos que estão povoadas de zonas de sombra, de episódios não-explicados e talvez inexplicáveis, de opções não-tomadas, de oportunidades não-aproveitadas, de elementos que ignoramos porque dizem respeito aos outros, sobre os quais é ainda mais difícil sabê-lo tudo ou saber um pouco. O engano e seu descobrimento nos fazem ver que também o passado é instável e movediço, que nem sequer o que nele parece já firme e a salvo é de uma vez nem é para sempre, que o que foi também está integrado pelo que não foi e que o que não foi ainda pode ser.
O gênero da novela proporciona isso ou o acentua ou o traz à nossa memória e à nossa consciência, daí talvez decorra sua perduração e que não tenha morrido, contrariamente ao que tantas vezes se anunciou. Daí que talvez não seja justo o que disse no começo, a saber, que a novela relata o que não aconteceu.
Talvez ocorra mais precisamente que as novelas aconteçam pelo fato de existirem e serem lidas, e, se olharmos bem, ao longo do tempo tem mais realidade "Dom Quixote"' do que qualquer de seus contemporâneos históricos da Espanha do século 17; Sherlock Holmes existiu em maior medida do que a rainha Vitória, porque, além do mais, continua existindo de vez em quando, como se fosse um rito; a França do começo do século, mais verdadeira e perdurável, mais "visitável", é sem dúvida a que aparece em "Em Busca do Tempo Perdido". Uma novela não apenas conta, mas também nos permite assistir a uma história ou a certos acontecimentos ou a um pensamento e, ao assistir, compreendemos.
Saber tudo isso -querer acreditar nisso é mais exato- não chega a ser às vezes suficiente para o escritor, enquanto está escrevendo. Há momentos em que ergo os olhos da máquina de escrever e acho estranho o mundo do qual estou emergindo e me pergunto como, sendo adulto, posso dedicar tantas horas e tanto esforço a algo sem o qual o mundo poderia passar muito bem, incluindo a mim mesmo; como posso ocupar-me em relatar uma história a qual eu mesmo vou averiguando à medida que a construo, como posso passar boa parte de minha vida instalado na ficção, fazendo acontecer coisas que não acontecem, com a extravagante e presunçosa idéia de que isso possa algum dia interessar a alguém.
Como, de ac cada traço, adquirisse vida. Um propósito que é compartilhado por muitos contistas: Dalton Trevisan queria reduzir seu texto à proporção do haicai. Monterroso o faz com um conto que, paradoxalmente chama-se "O Dinossauro", e que, como "Fecundidade", tem apenas uma linha: "Quando despertou, o dinossauro ainda estava ali".

Tradução de Ricardo Azevedo.

Texto Anterior: Histórias de viço e velhice
Próximo Texto: A potência contida de Augusto Monterroso
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.