São Paulo, domingo, 5 de janeiro de 1997 |
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O cosmopolitismo de araque
JOSÉ CARLOS DE SOUZA BRAGA
Um dos diretores do Banco Central brasileiro, Gustavo Franco, atacou este artigo, entre outros, com adjetivação furiosa -"macrocosmologia fantasmagórica", "capitalismo catástrofe"-, mas sem argumentos substantivos (Mais!, 24/11/96). Cada banco central tem os dirigentes que as armadilhas do destino histórico lhe aprontam, ainda que não o mereçam. Ao contrário do funcionário brasileiro, o presidente do FED, o banco central dos Estados Unidos, Alan Greenspan, comentou a globalização financeira com a seriedade que o assunto requer. Referindo-se ao comportamento especulativo nos mercados acionários mundiais, afirmou que eles vivem uma "exuberância irracional" (no caderno Dinheiro, Folha, 07/12/96). Num esforço de reflexão, Franco arremata: "Impossível saber o que são essas coisas, mas nada pode soar mais assustador: fetichismo, financeirização, capital em função, cruz-credo". Ora, cruz-credo! há de dizer o atento leitor diante da empulhação. Afinal, em algum momento de meditação, lá com seus botões, mesmo o operador há de suspeitar que no capitalismo o fetiche está relacionado ao dinheiro e ao seu modo especial de operar como reserva de valor. Nos bancos centrais, como demonstra a franqueza de Greenspan, muita coisa se constata, mesmo quando originariamente não se o fez nos bancos escolares, ou quando delas, acomodaticiamente, já se esqueceu. A irracionalidade em questão advém da multiplicação fictícia da riqueza e suas consequências danosas para as economias e as populações. A especulação provoca recorrentemente valorizações financeiras descoladas das variáveis reais como o lucro e o investimento produtivos. Esta camada de riqueza financeira fictícia, como expliquei no Mais!, passou a ser um elemento estrutural no capitalismo atual. É uma massa de "riqueza de papel" (títulos financeiros e moedas) com a qual manipulam diariamente bancos, empresas e grandes proprietários. Daí a sucessão de bolhas especulativas, crises de desvalorização e emergência de novas bolhas. Se os bancos centrais e as políticas econômicas fossem capazes de estimular tal riqueza monetária para fins produtivos, a infra-estrutura, o investimento, o emprego e as condições de vida no mundo teriam outra perspectiva. Ao contrário, essa "riqueza de papel" circula especulativamente na globalização e é sancionada, especialmente, por governos que mantêm altas taxas de juros. O Banco Central do Brasil, na gestão de Franco, é exemplar nesta prática com a qual atrai capitais estrangeiros para sustentar as reservas internacionais e assim garantir a "âncora" do Real: a taxa de câmbio sobrevalorizada diagnosticada pelo próprio BNDES. Os gestores de bancos centrais têm vivenciado também outro aspecto importante da irracionalidade, que é o da esterilidade da dívida pública. Esta não é mais em grande parte emitida para financiar o investimento governamental, mas sim para pagar custos de uma dívida que cresce com os juros altos. Mais dívida para pagar mais juros, impulsionando a inconsistência fiscal. Chegando o momento da desconfiança frente ao câmbio e ao fisco, vem o desenlace conhecido. Os aplicadores fogem da moeda artificialmente valorizada, caem as reservas internacionais, ocorre a crise cambial e o governo local precisará que um banco central emissor de divisa forte e organismos internacionais venham em socorro. Na opinião de analistas de distintos perfis político-ideológicos, o livre movimento de capitais especulativos, os juros altos, o câmbio sobrevalorizado, e a inconsistência fiscal são a marca de nossa "estabilização" inserida neste mundo global. Contra a lengalenga de que só há este caminho, permita-me o leitor lembrar de algo que registrei quando do lançamento do Plano Real: "Não se trata de desconhecer que a inserção das economias periféricas nesta economia global é inevitável, nem tão pouco de imaginar reincursões no nacional-desenvolvimentismo ou no nacional-populismo. O problema crucial é a estratégia, o cronograma e as políticas concretas desta inserção e não o reconhecimento acaciano de que o mundo mudou" (Mais!, 31/07/94). Se voltaremos ao "capitalismo catástrofe", como nos anos 30, o que não foi fruto da "imaginação crítica", mas em boa parte da inoperância das autoridades monetárias, é coisa que quem viver verá. O futuro, como ensinou lorde Keynes, é incognoscível. Por enquanto, como disse no artigo que instigou o diretor Franco, o espectro da globalização é: nem colapso nem desenvolvimento. Nesse sentido, o que se pode afirmar é que ao "capitalismo idade-de-ouro", do pós-guerra, sucedeu o "capitalismo medíocre" e seus operadores globais correspondentes. Medíocre, por suas baixas taxas de crescimento, por seu desemprego, pela desindustrialização em vários países, pelo aumento da heterogeneidade econômica e social mundo afora, pela ação restritiva da financeirização ao capital em sua função produtiva, pela elevação da "estabilização monetária" a qualquer custo à condição de "projeto nacional". A globalização é um fenômeno mais fundo do próprio desenvolvimento capitalista e enquanto tal ela tem dimensões irreversíveis, como a interdependência econômico-produtiva e monetário-financeira das nações. Reversível é a política do "laissez-faire" que os pacotes políticos retrógrados nela introjetam. As tarefas complexas da própria globalização acabarão por derrotá-la se não regredirmos ao século 19, quando se chegou a pretender que a economia mandasse na sociedade. Já é crescente, mesmo no âmbito do governo brasileiro, a percepção de que, na globalização, para um país ser vitorioso é preciso ser soberano sem xenofobismo, mas também sem cosmopolitismo de araque. Texto Anterior: Coluna Joyce Pascowitch Próximo Texto: Liberdade à brasileira Índice |
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