São Paulo, domingo, 5 de janeiro de 1997
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Liberdade à brasileira

MICHAEL KEPP
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em geral, o mundo nos deixa fazer o que quisermos, se estamos dispostos a arcar com as consequências. A maneira por que um povo exercita essa liberdade e o preço que paga por abusar dela variam de país para país.
Os americanos mostram um alto grau de alienação social, mas seu modo de exercitar sua liberdade envolve a defesa coletiva dos direitos de grupos específicos. Os brasileiros, ao contrário, se agregam socialmente com grande facilidade, mas exercitam sua liberdade com a visão centrada nos seus direitos pessoais.
No Brasil, a liberdade não tem parâmetros bem definidos porque as consequências também são vagas. Isso se explica pelo jeito brasileiro de dirigir carro, estacionar em filas triplas diante dos colégios, boates e restaurantes badalados, desrespeitar todas as outras filas, fazer barulho em casa, incomodando os vizinhos, e usar as calçadas como depósitos de carros, lixo e cocô de cachorro.
Na Disney World, as queixas a respeito do comportamento dos turistas brasileiros -furar filas, falar alto demais, fazer bagunça- são tão grandes que a empresa resolveu, agora, treinar guias especificamente para procurar fazer com que os brasileiros sejam mais respeitosos em relação aos interesses dos demais durante suas visitas ao parque.
O individualismo brasileiro na esfera pública se estende à esfera privada, na qual maridos vêem a infidelidade como uma liberdade reservada a eles, mas não a suas mulheres. Como no dito de Millôr Fernandes: "Nossa liberdade começa onde podemos impedir a dos outros".
Na verdade, os brasileiros se agregam em famílias grandes e integradas, turmas escolares, torcidas de futebol, galeras de funkeiros e frequentadores fiéis dos pontos da moda nas praias e dos bares em evidência. Sua natureza confraternizadora não é coletiva porque, embora ligada por sentimentos mútuos, não reflete princípios compartilhados.
Os americanos tendem a ser socialmente ilhados porque o capitalismo selvagem cria um tipo de individualismo altamente alienado. É uma sociedade em que a concorrência começa na creche, na qual as famílias geralmente se desintegram, o dinheiro mede a auto-estima e compra segurança, brigas são frequentemente resolvidas por processos judiciais e forasteiros (especialmente imigrantes) são vistos com desconfiança.
Apesar de sua alienação, os americanos muitas vezes se juntam quando grupos a que pertencem ou com que se identificam precisam ser defendidos. Esse exercício coletivo de liberdade pode ser visto em negros e hispânicos que lutam para ter cotas de vagas em universidades e concursos públicos, em feministas exigindo que o assédio sexual seja levado mais a sério e em gays que pressionam o governo para gastar mais verbas para vencer a Aids.
Em 1835, o historiador francês Alexis de Tocqueville argumentou que, na América, porque o ideal de igualdade é alcançável, "as mais leves desigualdades são dolorosamente visíveis". Isso cria a obrigação coletiva de combater essas desigualdades. Acrescentou também que, "quando a desigualdade de condição é a lei comum da sociedade, as mais acentuadas desigualdades não ferem o olho". Podia-se, com essa frase, estar descrevendo o Brasil, país em que a desigualdade de condição é tão aceita, que a necessidade coletiva de combatê-la não se materializa.
Essa inércia social é uma razão pela qual até os brasileiros mais marginalizados exercitam sua liberdade de uma maneira individualista. A maioria dos gays brasileiros, por exemplo, esconde sua identidade sexual em vez de se organizar em torno dela.
Este individualismo pode explicar também porque muitos brasileiros não levam a sério o comportamento "politicamente correto" e o consideram apenas um modismo importado dos EUA. A visão marcadamente individual não torna as pessoas muito sensíveis a interesses coletivos, frequentemente de grupos marginalizados.
As leis são os parâmetros do exercício da liberdade. Mas, no Brasil, a impunidade dos mais poderosos cria um vácuo moral em que outros brasileiros se consideram no direito de tirar vantagens dúbias -é a "lei de Gérson".
Nos EUA, um sistema legal mais rigoroso faz com que o abuso de liberdade tenha consequências mais drásticas. Os americanos respeitam sinais de trânsito e usam lixeiras públicas com mais frequência do que os brasileiros, em parte devido ao preço que eles pagariam se não o fizessem. É por isso que, nos EUA, meu país, eu dirijo como um anjo e aqui, como um capeta.
A maioria dos americanos aceita os limites à sua liberdade como sendo para o bem comum desde a revolução que fizeram para obter a independência, que foi um esforço coletivo. A América do Norte também foi colonizada por protestantes, que dão maior ênfase ao esforço coletivo e pregam a liberdade para leitura da Bíblia.
O Brasil, o contrário, foi colonizado por adeptos de uma igreja contra-reformista, e a luta por sua independência foi uma secessão, mas não uma revolução. Talvez porque a liberdade foi outorgada aos brasileiros, eles não se habituaram a exercitar seus direitos pela ação coletiva.
Também o Brasil foi colonizado para ser "explorado" e não "povoado" (como no caso dos EUA), o que não contribuiu para o desenvolvimento do espírito cívico desde a fundação do país. Desde a criação da República brasileira, o autoritarismo do Estado não tem favorecido a ação coletiva e tem ajudado a formar uma sociedade com uma visão antagônica em relação ao governo e à lei. Como no dito popular: "Para meus amigos tudo, para meus inimigos, a lei".
Esse antagonismo diante da lei, junto com uma natureza emocional, explica o que Sérgio Buarque de Holanda chamou de "individualismo radical" do caráter brasileiro, distinto do individualismo anglo-saxão, racional e impessoal.
Quando dois povos individualistas exercitam a liberdade de maneiras diferentes, isso não quer dizer que um valorize a sua liberdade mais do que o outro. Os dois sentiriam uma profunda falta dela se, um dia, ela acabasse. Cecília Meireles deixou isso claro quando escreveu: "Liberdade, uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda".

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