São Paulo, domingo, 5 de janeiro de 1997
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Cautela da guerrilha espelha esquerda latina

JORGE CASTAÑEDA

Há quase três semanas o Movimento Revolucionário Tupac Amaru (MRTA), no Peru, invadiu a casa do embaixador japonês em Lima e fez mais de 400 reféns. A primeira conclusão à qual facilmente se poderia chegar é que os guerrilheiros voltaram à ativa na América Latina e que o fantasma de Che Guevara se fez presente no bairro de San Isidro, na capital peruana. Na realidade, porém, mesmo uma iniciativa tão espetacular e radical quanto aquela perfeitamente executada pelo MRTA demonstra até que ponto a esquerda latino-americana mudou -pois o que é notável nos guerrilheiros do Tupac Amaru é sua moderação e sua abordagem sensata às negociações com o governo de Alberto Fujimori, além de sua relutância em pôr em prática suas ameaças. Essa cautela do Tupac Amaru, além do final negociado da guerra na Guatemala, constitui um reflexo mais fiel da situação da esquerda na América Latina do que as imagens emblemáticas de revolucionários encapuzados, portando metralhadoras, divulgadas nas telas de TV do mundo inteiro.
Os acordos de paz assinados na Cidade da Guatemala em 29 de dezembro e testemunhados por dignitários estrangeiros, líderes indígenas, ativistas dos direitos humanos e Boutros Boutros-Ghali, em sua última cerimônia oficial enquanto secretário-geral das Nações Unidas, podem muito bem representar o fim de uma era na América Latina. Não apenas porque as lutas armadas na Guerra dos Trinta Anos que assolou a região estão chegando ao fim -embora alguns resquícios ainda subsistam no Peru e na Colômbia-, nem mesmo porque as facções mais radicais da esquerda no hemisfério já transformaram suas espadas ideológicas em arados -mas, principalmente, devido aos pressupostos implícitos em que se apóiam pactos como o guatemalteco.
Os conflitos armados inaugurados na América Latina no início da década de 50 pelos guerrilheiros colombianos de Maiquetía e que receberam seu impulso mais forte com a vitória dos "barbudos" de Fidel Castro em Cuba, em 1959, estão se reduzindo e desfazendo. Na maior parte da América do Sul, já se aquietaram há muito tempo. Foi apenas em países como El Salvador, Nicarágua e Guatemala que o poder foi realmente disputado com armas nos últimos tempos. Se isso também era o caso no Peru até setembro de 1992, quando foi capturado o chefe do Sendero Luminoso, Abimael Guzmán, deixou de sê-lo desde então. A atual crise dos reféns em Lima diz respeito mais às condições de detenção dos guerrilheiros do Tupac Amaru presos do que a uma disputa sobre quem governa o país. E, embora os combatentes colombianos ainda liderados pelo lendário Tirofijo (Tiro Certeiro) Marulanda tenham condições de causar danos enormes à assediada economia do país, e especialmente à região petrolífera de Cusana, estão mais interessados na sobrevivência do que na luta pelo poder. Por ora, pelo menos, a luta armada na América Latina, enquanto meio para chegar ao poder ou transformar a sociedade, acabou; hoje, Che Guevara é um ícone cultural, não mais um líder militar cujo exemplo deva ser seguido.
Mas a esquerda no hemisfério não apenas abandonou seus princípios anteriores relativos aos chamados "caminhos de luta" como também trocou suas convicções revolucionárias por posições reformistas que teria desprezado uma ou duas décadas atrás. Pelo menos duas das quatro organizações armadas que compõem a UNRG, na Guatemala, além da maioria dos grupos salvadorenhos, sem falar na esquerda brasileira, chilena ou venezuelana, já abandonaram seu compromisso anterior com a transformação revolucionária da sociedade.
Não apenas eles não mais desejam promover uma revolução por meios militares, mas revolução não faz mais parte de sua pauta de prioridades. Ponto final. O programa de reformas econômicas, sociais e políticas que defendem pode ser considerado radical ou pouco convencional quando comparado à obsessão pelo livre mercado que hoje assola a região, mas o conteúdo da plataforma da esquerda latino-americana, hoje, difere pouco daquela da Aliança pelo Progresso, apresentado pela administração Kennedy na conferência de Punta del Este, 35 anos atrás. Mas a viabilidade deste programa em relação ao anterior, revolucionário, já é outra questão.
É nisso, de fato, que consiste o simbolismo mais importante do acordo de paz guatemalteco comemorado alguns dias atrás nas ruas da capital nacional, nos planaltos e nos povoados maias devastados por três décadas de guerra civil. O conflito mutuamente destrutivo na Guatemala data do golpe de Estado contra o governo democraticamente eleito de Jacobo Arbenz, em 1954, promovido pela Agência Central de Inteligência, a CIA. Apoiado pelo Partido Comunista, implementou um programa moderado de reformas sociais que incluía a instituição de um imposto de renda, obras públicas, reforma agrária e salário mínimo. Foi derrubado por uma aliança perversa abrangendo a oligarquia local, a United Fruit Company e Washington.
Seis anos mais tarde um grupo de oficiais do Exército, convencidos de que eleições e meios pacíficos de buscar o poder e a transformação da sociedade constituíam uma ambição impossível, estabeleceram um dos primeiros focos de guerrilha na América Latina. Embora derrotados na época e mais uma vez em meados dos anos 60, reapareceram no início dos anos 80, e dois dos atuais signatários do acordo de paz -Rolando Morán e Pablo Monsanto- vêm daquele primeiro grupo formado em 1960.
Será a pauta reformista que adotam hoje -não tão diferente das políticas implementadas por Arbenz no início dos anos 50- mais aceitável do que aquela para a direita nacional -militar e civil- e seus aliados em Washington? Como perguntou retoricamente o presidente Alvaro Arzú durante as cerimônias de assinatura, quem dará o primeiro passo decisivo -os rebeldes que tomaram em armas porque o governo Arbenz foi removido à força ou os ricos guatemaltecos, que mais uma vez irão recusar-se a pagar impostos, elevar os salários, criar empregos, etc?
A verdadeira questão suscitada por essa sucessão de pactos de paz negociados na América Central e Latina é se a democracia representativa que inauguraram abrirá espaço para as reformas econômicas e sociais que muitos desses países exigem. A questão é saber se as profundas mudanças na distribuição do poder de que virtualmente toda a América Latina precisa podem ser realizadas dessa maneira.
Talvez se constate que as guerrilhas dos anos 60 e 70 estavam enganadas desde o início, ou estariam enganadas hoje, fosse qual fosse a validade de suas reivindicações de 20 anos atrás: a transformação reformista, redistributiva pode ser alcançada na região por meios institucionais. Ou talvez constatemos que as ancestrais estruturas sociais e cultura política do hemisfério são muito mais difíceis de modificar e moldar do que muitos imaginam, e que Che Guevara, no fim das contas, tinha certa dose de razão.

Tradução de Clara Allain

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