São Paulo, segunda-feira, 6 de janeiro de 1997
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Robinson Crusoé

JOÃO SAYAD

Robinson Crusoé não precisou pensar muito para decidir suas prioridades: antes de mais nada, providenciar abrigo onde pudesse evitar o frio e animais selvagens. Depois, pescar e colher frutas para se alimentar.
Já instalado e com sobrevivência garantida, pôde investir: melhorou as condições da casa improvisada, construiu equipamentos para pescar mais eficientemente e pôde tomar algumas medidas para garantir sua segurança contra outros habitantes da ilha que talvez fossem pouco amistosos.
Decisões fáceis, baseadas em verdades nítidas e claras: a prioridade de Robinson era produzir os itens necessários à sua sobrevivência, como alimento, habitação e segurança.
Em sociedades e economias que não são compostas por apenas um náufrago, as decisões são mais difíceis.
A economia brasileira, por exemplo, tem crescido a partir dos gastos em bens de consumo, liderados pelos bens de consumo duráveis: TVs coloridas, videocassetes, aparelhos de som, eletrodomésticos e automóveis.
O crescimento é fácil de compreender: o número desses aparelhos por habitante no Brasil era muito baixo. Além disso, as famílias podiam se endividar para comprar.
O consumidor é quem decide o que é prioritário: comprar mais uma televisão ou trocar por uma colorida.
Esse padrão de crescimento não é inédito na economia brasileira. Na recuperação do crescimento, após 1967, a economia também foi puxada, inicialmente, pela venda de bens de consumo duráveis.
A economia, de fato, cresceu rapidamente nos anos seguintes -se bem que o crescimento puxado pelo consumo de bens duráveis tenha sido, depois, substituído pelos investimentos em infra-estrutura, em exportações, em substituição de importações de bens de capital.
Muitas economias capitalistas (particularmente as retardatárias do século 19, as subdesenvolvidas dos anos 50 e os mercados emergentes atuais) funcionam assim. Começam pelo desnecessário.
É difícil justificar a racionalidade desse caminho de crescimento.
As economias planificadas, como a antiga União Soviética, tentaram o caminho inverso: primeiro, a produção de bens de capital; segundo, a produção de bens de capital; só depois a produção de bens de consumo. Isso resultou em escassez de bens de consumo, insatisfação e filas para comprar quase tudo.
A discussão sobre a melhor estratégia é infindável e inconclusiva. Há 40 anos, discutia-se se o desenvolvimento deveria ser equilibrado ou desequilibrado. Ou seja, se deveríamos investir antes na industrialização e depois em siderurgia e eletricidade. Ou se o melhor caminho deveria ser antes siderurgia e depois indústria.
Hirschman argumentava a favor do desenvolvimento desequilibrado: o que faltava aos países subdesenvolvidos era capacidade de decisão, e, se muitos automóveis eram produzidos antes que as cidades estivessem preparadas ou as estradas pavimentadas, não tinha importância. A pressão dos congestionamentos de trânsito e dos acidentes rodoviários acabaria por gerar investimentos em infra-estrutura.
Mais tarde, Galbraith colocou a questão de forma mais adequada. Previu, corretamente, que com o crescimento da produção e da riqueza do mundo haveria um crescimento rápido da demanda por bens públicos, quer dizer, bens que não podem ser produzidos pelo setor privado porque não são lucrativos: educação, segurança, sistema viário, qualidade do meio ambiente.
Não previu que essa demanda cresceria exatamente no momento em que se implantava a idéia de Estado mínimo e de privatização. As coisas públicas, de hoje em diante, devem ser produzidas e oferecidas pelo setor privado.
No Brasil, estamos importando bilhões de dólares em bens de consumo que não conseguimos pagar com exportações.
As soluções propostas para o desequilíbrio são várias: controlar o crédito que permite que vivamos além da nossa capacidade, crescer e consumir menos, mudar o câmbio ou cortar o déficit fiscal.
A solução preferida pelos discursos oficiais é cortar o déficit fiscal, apesar de o déficit fiscal estar crescendo somente porque praticamos juros altos para que tenhamos dólares para comprar no exterior.
Estamos propondo corte do déficit desde 1974, com a crise do petróleo, como se os funcionários públicos pudessem ser responsabilizados pelo consumo de gasolina. Agora, queremos cortar o déficit esquecendo a importância dos juros e imaginando que é o setor público que gasta muito em videocassetes ou aparelhos de som.
O resultado não obedece à lógica impecável de Robinson Crusoé: queremos cortar os gastos começando pelos gastos públicos -saúde, infra-estrutura, segurança, educação-, os mais importantes e necessários.
Como não moramos em uma ilha deserta, só nos resta pensar calmamente sobre tudo isso, ouvindo rádio ou falando no celular enquanto estamos presos dentro do carro, sob um sol escaldante e no maior congestionamento de trânsito da temporada.

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