São Paulo, terça-feira, 7 de janeiro de 1997
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Ao som do verde mar e à luz do céu profundo

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O verde mar é o do Nordeste. O céu também -o céu azul profundamente claro do Nordeste. O Nordeste é para onde vão, nesta época do ano, rumas de gente rica do Sudeste. Depois que a classe média invadiu o Caribe, depois que ficou cafona passar férias no Caribe, a classe alta vai ou para a Europa (até os EUA já estão démodé) e a Polinésia taitiana ou para o Nordeste.
O Nordeste! Até 20 anos atrás, nordestino só via gente do Sul (Rio e São Paulo) pela televisão. E eram uns mitos, com aquela fala, aquelas roupas e aquele jeito de ser -bem tratado, bem nutrido- que nós, nordestinos pobres, admirávamos e queríamos imitar.
Pois é, naquela época, ninguém precisava das praias do Nordeste, ninguém tinha atração por aquela paisagem monótona de coqueiros centenários, palha de coqueiro, coco e água de coco. Não se tinha descoberto ainda o sabor do sururu, do maçunim ou da pata do guaiamum, do caranguejo colhido pelos flagelados no mangue da cidade do Recife.
Naquele tempo, as praias do Guarujá ainda não tinham virado um lamaçal de esgoto a céu aberto. Implodidos Guarujá e Caribe, aumentou o contingente de ricos que batem em retirada para as praias do Nordeste no verão. Já faz tempo que é chique ter casa no litoral menos habitado de Alagoas, Pernambuco, do Rio Grande do Norte ou do Ceará.
Não é novo esse processo de migração de verão. E é claro que sobram alguns bolsões de paraíso para milionários no litoral norte de São Paulo, em algumas praias do Rio, de Florianópolis e no próprio Guarujá, que tem certa fartura de "praias particulares".
O estranho, para quem vivia no antigo Nordeste, é ver hoje o turista do sul misturar-se ao homem local, ao ainda miserável vendedor de picolé caseiro vendido a dez centavos a unidade, à vendedora de caju e manga espada, que cede bacias inteiras da fruta doce por R$ 1,00 ao milionário paulista.
Um não entende o outro. Afinal ainda há conflitos de costume, de educação, sotaque e ritmo de viver. O homem local, escuro, cansado e pobre, olha com um misto de irritação e gratidão o turista branco que se estende ao sol ardente.
"Ao som do mar e à luz do céu profundo", como diz o Hino Nacional, o turista do Sul vira patriota no verão. Acha o Nordeste lindo, e o Brasil, bom.
É estranho, ainda que lá nem tudo seja miséria hoje. O Nordeste novo-rico está em plena ascensão -e só não é mais patético do que o Guarujá novo-rico. A diferença está em que o novo-rico nordestino ostenta seu celular, seu carro importado e seu jet ski nos restos de praia ainda limpos.
No Guarujá, entretanto, o novo-rico não se confunde com ninguém. É inconsciente. Está esperando que alguém o avise que ele entrou em processo de decadência. Enquanto isso, segue atendendo satisfeito -depois de um congestionamento monstro de nove horas na descida de São Paulo para a praia- seu telefone celular, que toca de dentro da lama mesmo, por onde bóiam os toletes da merda profunda.

E-mailmfelinto@uol.com.br

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