São Paulo, terça-feira, 7 de janeiro de 1997
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FGTS: privatização ou habitação?

RICARDO YAZBEK

Em artigo publicado no dia 25/12 ("FGTS: mais liberdade e desenvolvimento"), o ministro do Planejamento, Antonio Kandir, apresentou consistentes argumentos em prol do projeto de lei que cria o Fundo Mútuo de Privatizações (FMP-FGTS).
O fundo oferece ao trabalhador a chance de obter remuneração maior do que a hoje oferecida aos recursos do FGTS (TR mais 3%), esclareceu o ministro, alertando, todavia, para os riscos inerentes à nova aplicação, uma vez que falamos de mercado acionário.
E foi além: focalizou os benefícios também para o país, inclusive no que se refere ao fortalecimento do mercado de capitais; o que "se correlaciona positivamente com elevadas taxas de poupança e sua canalização para a atividade produtiva".
Não há quem, em sã consciência, possa se opor aos argumentos apresentados pelo ministro.
A não ser por um aspecto, ignorado pelo artigo em questão: que fonte de recursos irá financiar habitação popular e saneamento básico? Na hipótese de todos os trabalhadores optarem por destinar 50% de suas contas para o FMP-FGTS, de onde virão os recursos complementares?
Cabe lembrar que, por lei, o FGTS foi criado com finalidades claramente definidas: substituir a estabilidade no emprego; sustentar temporariamente o trabalhador e indenizá-lo após sua vida útil; e financiar habitação popular e saneamento básico, estes dois últimos itens necessitando de expressivos investimentos, tendo no FGTS a única fonte de financiamento a custo razoável.
Lembre-se, ainda, que o déficit habitacional brasileiro é simplesmente imoral. Sua solução implica vontade política e definição de planos consistentes, de longo prazo, para que haja eficaz atuação do setor público, complementada pelo setor privado.
Para tanto, faz-se necessária uma política habitacional e de desenvolvimento urbano especial para o segmento de interesse social, a qual deve possuir, além dos recursos do FGTS, verbas orçamentárias próprias nos âmbitos federal, estadual e municipal.
Daí nossa preocupação com a possibilidade de desvio das finalidades do fundo. Afinal, habitação e saneamento são ingredientes básicos à cidadania. E o Brasil não contará com o respeito internacional ao qual se candidata enquanto não eliminar essa imensa chaga social, tarefa na qual o FGTS é ingrediente fundamental.
Isso porque estamos falando de volumes consideráveis. Desde que foi criado até junho de 96, esse fundo acumulou saldo de R$ 55 bilhões, dos quais somente R$ 6 bilhões foram alocados no setor privado. Todo o restante foi e continua sendo direcionado ao setor público; para Estados e municípios que simplesmente não retornam os empréstimos concedidos, alvo de alongamentos constantes, rolagens de dívidas etc.
No que se refere ao orçamento definido no início de 1996 -cerca de R$ 5 bilhões, segundo o Conselho Curador do FGTS-, pouco foi efetivamente aplicado. Motivo: o desequilíbrio fiscal de Estados e municípios, que limitou novas contratações junto ao FGTS.
Daí estar-se pensando em encontrar um jeito de canalizar produtivamente o volume de dinheiro que está parado no fundo. Dinheiro esse que cresce mensalmente, pois entram na conta 8% das folhas de pagamento de todas as empresas do país.
Todavia, esqueceu o CCFGTS -integrado em sua maioria por representantes do governo- que muito poderia ter sido feito, em termos de moradias e saneamento básico, pela iniciativa privada.
Na linha de R$ 384 milhões liberada em setembro passado -após intensas tratativas-, as empresas, além de obedecerem a infinitas exigências, retornarão os empréstimos na base de TR mais 10% - ou seja, uma rentabilidade, no mínimo, interessante.
Pode-se indagar o que esses dados têm a ver com o FMP-FGTS, centrado, acima de tudo, nos interesses do trabalhador, ou seja, na possibilidade de maior remuneração de seus recursos.
Têm tudo a ver, na medida em que estamos falando de um instrumento que precisa ser preservado em benefício dele próprio. Na sua aposentadoria ou doença, na casa em que mora, na água que bebe. Recursos que têm de ser absolutamente garantidos: não podem correr riscos. E não podem ser desviados de suas finalidades precípuas, a menos que se crie uma outra fonte, garantidora dos mesmos resultados.
Somos contra as privatizações, ou ao direito de o trabalhador ter maior rentabilidade? De forma alguma. Aliás, fomos dos primeiros a aplaudir o fato de o governo reconhecer a necessidade de fornecer ao FGTS maior rentabilidade. Só que isso pode ser feito de várias formas, inclusive por meio de uma gestão mais direta dos trabalhadores e dos empregadores.
Por todas estas razões, fica claro que, uma vez viabilizado o FMP, será preciso definir como ficará o financiamento à moradia para as famílias carentes e para o indispensável saneamento básico, áreas em que o setor privado pode complementar o setor público.
Por suas características de ciclo operacional elevado, esse segmento representa continuidade na sustentação do mercado de trabalho e da dinâmica industrial -materiais de construção, mobiliário etc.-, gerando empregos e promovendo o desenvolvimento do país.
A análise do projeto de lei que propõe o FMP-FGTS será, portanto, o fórum adequado para que sejam feitas tais definições, bem como para identificar formas de ampliar o leque de alternativas para que o trabalhador, legítimo proprietário dos recursos aplicados naquele fundo, tenha a merecida remuneração.
Cumpre, finalmente, salientar que de nada adiantarão empresas saudáveis com povo doente, sem casa, sem esgoto, sem água tratada. No país do cobertor curto, é preciso muita criatividade e competência para não vestir um santo desvestindo outro.

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