São Paulo, sábado, 11 de janeiro de 1997
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Os gigantes da montanha

RUBENS RICUPERO

É uma peça estranha e inacabada a última de Pirandello, de uma beleza fantasmagórica, com a magia do teatro emergindo misteriosamente das brumas do sonho.
Presença-ausência inquietante, jamais explicitada, os titãs mitológicos querem arrebatar o poder celeste, mas a falta de medida e o excesso condenam-nos à perpétua inadaptação, à derrota inesperada que os surpreende a um passo apenas da vitória.
O mito dos gigantes evoca um pouco o destino ambíguo dos países-continentes, produtos da soma das dificuldades de territórios descomunais com os problemas de populações imensas.
George Kennan os chama de países-monstros e os enumera: EUA, Rússia, China, Índia, Brasil, mais de 46 milhões de quilômetros quadrados somados a 2,7 bilhões de pessoas.
Na idade de ouro dos Estados nacionais, cuja realização se fazia por meio do domínio do espaço geográfico e da massa de gente, tamanho era documento e território, como dizia Rio Branco, era poder. Foi a época em que, confiantes, entoávamos o Hino Nacional: "Gigante pela própria natureza".
Na hora do questionamento do Estado-Nação pela realidade ou ideologia da globalização, o tamanho e as dimensões ameaçam converter-se em problemas em si mesmos. De um lado, o custo colossal de criar e manter uma infra-estrutura moderna em distâncias de milhares de quilômetros. Do outro, as pressões e expectativas de centenas de milhões de indivíduos.
Esse é um dos casos em que o todo é maior do que as partes, pois, além de juntar dois tipos diversos de complicações, a soma acrescenta um terceiro: o aumento do grau de complexidade oriundo de sistemas gigantescos.
Em seu livro "Around the Cragged Hill", Kennan se restringe à abordagem política que vem dos gregos, passando por Rousseau: a democracia ideal só funcionaria bem em unidades limitadas nas quais os cidadãos se conhecessem e conhecessem os governantes.
Existe, contudo, outra dimensão, que ganha importância em decorrência do enfraquecimento dos fundamentos nacionais do Estado.
Trata-se, com efeito, de indagar se os países-monstros não teriam incapacidade intrínseca ou, ao menos, dificuldade excepcional de adaptar-se à globalização e até à regionalização. Seriam como os dinossauros, que, não conseguindo, adaptar-se à mudança do hábitat, acabaram por desaparecer.
O problema se manifesta, em primeiro lugar, na abertura maior ou menor ao comércio mundial.
A integração a um mercado globalizado resulta muito mais natural para as cidades-Estados, como Cingapura e Hong Kong, ou os pequenos países, como Bélgica e Holanda, para os quais o comércio exterior frequentemente supera o PIB, pois não só exportam o que produzem, mas servem de entrepostos e intermediários. Para eles, já liberalizados por questão de sobrevivência, a globalização é ganho líquido, facilitando-lhes a área de atuação.
Ao contrário, para os gigantes, o comércio exterior oscila em geral entre 9% e 15% do PIB, com a média mais perto do número inferior. Até para os EUA, as exportações não chegam a 4% do PIB, bem avançada a década de 50. Acostumados a contemplar o próprio umbigo e a descansar na segurança de um amplo mercado interno, os monstros não farão a transição sem grande dilaceramento.
Valeria a pena, mesmo assim, se houvesse compensação. A globalização é, antes de tudo, um meio de tornar o mundo mais seguro para as transnacionais.
Tendem a ganhar mais, assim, os que detêm o controle de empresas capazes de atuação planetária. É o caso dos EUA, que possuem nada menos do que 32 dentre as cem maiores -portanto, a primeira divisão.
Os outros quatro não só não figuram nessa lista como se arriscam até a perder, por efeito das privatizações, uns poucos lugares na segunda ou terceira divisão ocupados por algumas de suas empresas estatais.
Finalmente, os países-monstros correm riscos em termos de unidade nacional, pois a globalização agrava os conflitos de interesse econômicos entre regiões muito heterogêneas, mais numerosas nesses países.
Tome-se, por exemplo, o caso do Brasil. Se não há mais lugar para um projeto de industrialização voltado para o mercado interno, por que razão o Nordeste e a Amazônia deveriam pagar mais caro por produtos inferiores de São Paulo, em lugar de importá-los dos EUA ou da Europa, onde se concentram os seus mercados?
Por que deveria o Ceará importar milho da Argentina para sua avicultura, como me perguntou um ex-governador daquele Estado, se pode fazê-lo dos EUA por menor preço? O recente decreto sobre a indústria automobilística no Nordeste ilustra bem como o problema já se manifesta entre nós.
Ele esteve e está presente nas tensões regionais na ex-URSS e na Rússia de hoje, na Índia, no dualismo chinês. O mesmo ocorre na União Européia. Sem a segurança do espaço ampliado europeu, seria inconcebível o movimento de separação do norte da Itália, cada vez menos solidário com os exasperantes problemas meridionais.
A razão de tudo isso é que, pela primeira vez, planteia-se a possibilidade de uma organização econômica independente da base nacional. Até agora, era o Estado o único a fornecer o mínimo denominador comum para harmonizar interesses contrastantes de regiões heterogêneas. Perdido esse cimento, o que nos reta: um planeta sem fronteiras ou a hegemonia de um outro gigante?

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