São Paulo, quinta-feira, 16 de janeiro de 1997
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Um cidadão anacrônico

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Na semana que vem, Barbosa Lima Sobrinho completa cem anos. Merece todas as homenagens que vem recebendo e ainda receberá.
É verdade que, à luz das idéias dominantes, a data não recomendaria, a rigor, que soltássemos um mísero busca-pé. Afinal, Barbosa Lima é uma figura de uma inatualidade gritante. As posições que defende estão, em geral, em desacordo com o pensamento hegemônico e os modismos da época.
Mas, meus amigos, não vamos esquecer o que dizia Nietzsche: um homem de valor nunca está em perfeita sintonia com o seu tempo. Só os idiotas e os acomodados convivem sem conflito com os conceitos e preconceitos do presente.
Em entrevista recente à Folha, Barbosa Lima foi submetido à pergunta inevitável: "A globalização interessa ao Brasil?". A sua resposta foi simples e direta: "O antigo liberalismo veio a se chamar neoliberalismo e hoje se chama globalização. É uma maneira de procurar palavras que disfarcem a essência profunda desse conceito, que é a prosperidade das grandes potências." Seria difícil colocar melhor a questão em duas frases.
Nessa mesma entrevista, lembrou que todas as constituições republicanas legítimas sempre estabeleceram a inelegibilidade do presidente da República para a sua própria sucessão. "É um dispositivo fundamental", observou, "porque ninguém pode ter idéia do gasto e das concessões que vai fazer um presidente que se candidate à reeleição."
Quanto aos partidos políticos brasileiros, Barbosa Lima fez uma observação lapidar: "No Brasil, só há dois partidos: o partido de Tiradentes, defendendo o interesse do Brasil, e o de Joaquim Silvério dos Reis, traindo os interesses do Brasil."
Pois bem. Nos últimos tempos, o partido de Silvério dos Reis está dando todas as cartas. A causa nacional do Brasil tem estado num abandono só comparável, talvez, ao da França em 1940. Sem que exista, entre nós, um De Gaulle e, do outro lado do Canal da Mancha, um Churchill para nos acolher.
Como disse Barbosa Lima, em artigo publicado recentemente no "Jornal do Brasil", o país "está sendo vítima de uma geração de pigmeus". Temos tido uma sucessão de governos que apenas simulam a defesa do interesse nacional.
O quadro é, sem dúvida, adverso. O político ou tecnocrata que se dispuser a brigar pelo interesse nacional, corre sério risco de ser posto na rua a pontapés. Como o apego às benesses do poder é a regra, a maioria não se atreve a dar um pio em favor do país.
Permitam-me contar um pequeno episódio, que é ilustrativo, embora não muito edificante. Quando trabalhava com o ministro Dilson Funaro, ouvi um relato espantoso de um diretor do Banco Central, funcionário que havíamos herdado do governo Figueiredo. Não daria crédito à história, se não a tivesse ouvido do próprio protagonista.
Certa vez, em reunião com o comitê de bancos credores em Nova York, o tal diretor do Banco Central foi duramente insultado. Não era a primeira vez, mas naquela ocasião a agressividade dos bancos tinha sido particularmente intensa. Tanto que o nosso representante decidiu levantar da mesa e, em protesto, encerrar a reunião.
Aí aconteceu o lance delirante, quase alucinatório. A caminho da porta, o diretor do Banco Central caiu em si: "Ninguém vai me apoiar no Brasil. Não posso fazer isso." Deu meia-volta e sentou-se de novo!
O pior é que a pusilanimidade do funcionário tinha a sua razão de ser. Não pensem que se trata de um caso isolado. De episódios burlescos como esse é que se constituíram os bastidores da crise da dívida externa nos anos 80.
No plano das idéias e das propostas de política econômica, o quadro não é diferente. Na época da superinflação, alguns conhecidos economistas patrícios tiveram a brilhante idéia de sugerir que o Brasil deveria regredir a um modelo monetário de tipo colonial. Proclamava-se dogmaticamente que não havia alternativa para debelar a crise inflacionária. A perda de credibilidade do Estado brasileiro era tal, que só nos restaria subordinar-nos totalmente ao dólar. E transformar a moeda nacional em reles apêndice da moeda norte-americana.
O argumento fez escola. Por volta de 1992-93, era crescente o número de economistas e formadores de opinião que aderiam à idéia. Em alguns momentos, no final do governo Collor e depois durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso no Ministério da Fazenda, o Brasil parecia prestes a adotá-la.
A idéia, além de absurda, não era nem original. O Banco Mundial, por exemplo, fazia já há alguns anos discreta, porém intensa, propaganda em favor dessa alternativa de combate à inflação. E a Argentina havia adotado modelo monetário semelhante em 1991, com custos em termos de perda de margem de manobra, recessão e desemprego que só ficariam evidentes depois da crise mexicana.
Mas a apresentação da idéia e sua grande repercussão no Brasil eram sintomáticas do estado de espírito do país. Imaginem que alguém fizesse semelhante achado em outro tipo de país. Digamos na Alemanha, na Inglaterra ou até na Itália. Se estivesse convencido dos méritos da idéia, o alemão, inglês ou italiano trataria de esconder cuidadosamente a sua filiação colonial. Caso contrário, poderia acabar metido numa camisa-de-força e internado no hospício mais à mão.
Aqui, não. Os economistas locais divulgavam abertamente a origem colonial da proposta. Isso em nada atrapalhou o percurso da idéia. Ao contrário, a recepção foi entusiástica. Os seus defensores quase foram carregados em triunfo.
Num país como esse, uma personalidade como Barbosa Lima é quase um milagre. Nestas semanas em que o presidente da República, vergonhosamente apegado ao cargo, dá um espetáculo deprimente de subdesenvolvimento e caudilhismo, vamos lavar a alma, homenageando Barbosa Lima Sobrinho.

E-mail: pnbjr@ibm.net

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