São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 1997
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A pasta amarela do senador Requião é gorda como Ali Babá; Castelinho e Otto: a eternidade dos amigos; O amigo deprimido; Patrulheiro literário; Calendário; Os globalitários e o Mercado ExtraTerrestre; Conta aberta

ELIO GASPARI

A pasta amarela do senador Requião é gorda como Ali Babá
No conjunto de salas da assessoria das comissões do Senado há um cofre cinza. Desde terça-feira ele guarda uma pasta amarela, mandada pelo Banco Central. Tem 159 páginas. É o relatório do caso do endividamento dos Estados de Alagoas e Santa Catarina, bem como da cidade de São Paulo. Foi o relator da Comissão Parlamentar de Inquérito dos Precatórios, senador Roberto Requião, quem o botou lá.
Nunca é demais repetir: pode-se fazer tudo pelos precatórios, menos ler sobre eles, assim como se pode desejar sucesso a todas as CPIs, menos ter paciência para acompanhar seus trabalhos. Perder tempo com uma CPI de precatórios, nem pensar.
Uma tacada de R$ 2 bilhões
É o caso de sugerir às pessoas que querem gastar o seu domingo de forma menos tediosa que começou a ser contada a história de Ali Babá e seus 40 amigos. Não se conhece ainda a identidade do bom Babá, nem se sabe se são só 40 os amigos, mas se sabe o que os uniu. Foi uma caravana financeira que aumentou em R$ 9 bilhões o endividamento de quatro Estados e sete municípios. Num cálculo superficial, deve ter rendido perto de R$ 2 bilhões para uma turma de maganos. Tacada de nível internacional.
O banqueiro Fabio Barreto Nahoum, do Vetor, disse que alguns financistas acharam o que chamou de "nicho do mercado". O nicho funcionou assim:
Como a Constituição permite que se lancem títulos para quitar velhas dívidas que a Justiça já mandou pagar (os precatórios), os Estados de Alagoas e Santa Catarina aceitaram a assessoria de banqueiros para organizar a emissão dos papéis. Divaldo Suruagy, em Alagoas, resolveu tomar R$ 300 milhões. Paulo Afonso Vieira, em Santa Catarina, foi buscar R$ 600 milhões. Tinham o nicho, mas não tinham tantos precatórios a pagar. Em Alagoas falsificou-se a assinatura de Fernando Collor. Em Santa Catarina apareceu a cópia de um papel desaparecido.
Produzida a dívida inexistente, a caravana foi para o Banco Central. Lá, para cada documento negando amparo à dívida, apareceu outro, permitindo-a. Num caso, Jairo da Cruz Ferreira, chefe do Departamento da Dívida Pública, brecou boa parte de uma emissão do município de São Paulo (gestão Maluf, Celso Pitta na Secretaria de Finanças). Numa canetada, cortou. Noutra, autorizou R$ 600 milhões, R$ 100 milhões a mais do que havia recusado. Entre as duas, teria recebido uma palavra do senador Gilberto Miranda. Aí poderia estar outro nicho.
Do Banco Central o papelório ia para o Senado. As emissões de Santa Catarina e Alagoas sobrevoaram o rito parlamentar e foram votadas em regime de urgência. Autorizada a dívida, os bancos puseram no nicho o que se denomina taxa de sucesso. Paulo Afonso pagou ao Vetor 5,5% sobre o total da emissão, coisa de R$ 30 milhões.
Isso é que é nicho. A dívida pública de um Estado da União tramita pelo Banco Central do Brasil, é votada pelo Senado Federal e no fim da linha privatiza-se o êxito. Ou quem vendeu a taxa de sucesso está como o vigarista que cobra dez centavos ao tabaréu para abrir um sinal de avenida, ou há alguém cobrando pelo funcionamento do Senado e do BC.
Lançados os títulos, os papéis eram vendidos barato numa ponta e comprados caro noutra, algumas vezes por fundações da viúva. Em Santa Catarina se constatou que uma firma de São Paulo, chamada IBF Factoring, descobrira algum princípio de eletromagnetismo financeiro. Sempre que comprava barato achava a quem vender caro. Logo ela, que funciona num sobrado, nunca deu lucro, nem paga conta de água. Pois a pasta amarela informa que o fenômeno eletromagnético se deu também em Alagoas. Novamente com a IBF no lance.
Um estudo detalhado da pasta permitirá dizer como funcionou o magnetismo com os papéis de Maluf. Sabe-se que o secretário Celso Pitta conseguiu vender um lote de títulos, na manhã do dia 1º de dezembro de 1994, por R$ 52,07 milhões, comprando-os, horas depois, por R$ 53,5 milhões. Tosou-se a viúva em R$ 1,7 milhão. A pasta amarela informa também que Pitta especificava, por escrito, corretoras e operações. Um cruzamento desses documentos com as empresas eletromagnéticas poderá jogar luz nas finanças malufista. A IBF, segundo a pasta, estava no lance paulistano.
A pasta informa ainda que o sucesso ficou só na taxa. Em alguns casos os papéis não encontraram comprador e há meses vêm sendo vendidos por bancos oficiais de manhã e recomprados à tarde, financiando banqueiros. Santa Catarina sustenta algo como R$ 350 milhões. (Financiar imóveis para a classe média, isso a Caixa Econômica Federal não consegue. Sua burocracia encalhou R$ 250 milhões. Em Brasília, só 14 pessoas derrotaram a suspeita segundo a qual todo pedestre é ladrão.)
Na quarta, novas emoções
Se isso tudo fosse pouco, a agência paulistana do Banco do Estado de Rondônia, BERON (sob intervenção do BC) foi contaminada por algum novo tipo de eletromagnetismo. Conseguiu atrair operações gigantescas e extremamente velozes de bancos energizados pelos títulos dos precatórios.
Nesta quarta-feira a pasta amarela sairá do cofre e voltará para a mesa do senador Roberto Requião. A CPI tomará o primeiro depoimento de Jairo Ferreira. Poucas pessoas sabem tão bem quanto ele o que pode ter acontecido. Se ninguém atrapalhar, Requião poderá identificar Ali Babá e dizer quantos amigos tem.

Castelinho e Otto: a eternidade dos amigos
Élvia Castello Branco, viúva do jornalista Carlos Castello Branco, entregará na quinta-feira à Casa de Rui Barbosa o arquivo pessoal de seu marido. São sete caixas. Introvertido e discreto, Castelinho conservou mais emoções que confidências. Nenhum outro jornalista político brasileiro soube tanto e guardou tão bem as fontes do que ouviu.
Castelinho morreu em 1993, aos 72 anos. Ele não guardou o que escreveu aos outros, só o que deles recebeu. Duas pastas guardam um tesouro de afeto. É a tenaz coleção de cartas que recebeu por quase 40 anos de seu amigo Otto Lara Resende. Conheceram-se como jovens jornalistas e terminaram suas jornadas na Academia Brasileira de Letras.
Abaixo vão três peças desse tesouro, uma carta inteira e um trecho de outra.
A carta foi escrita por Otto em setembro de 1978, pouco depois da morte do Papa Paulo VI e do cantor Orlando Silva. O Brasil vivia a ambiguidade de um final de ditadura. Era um ano de sucessão presidencial, com eleição indireta. O presidente Ernesto Geisel patrocinava a candidatura do ex-chefe do Serviço Nacional de Informações, general João Batista Figueiredo. A oposição, concentrada no MDB, lançara outro general (Euler Bentes Ribeiro).
Era um país estranho.
Nele a direita militar dizia o seguinte do professor Fernando Henrique Cardoso:
"Representante no Brasil da Junta de Cooordenação Revolucionária (JCR), organização clandestina que coordena a subversão na América Latina."
O então deputado Marco Maciel, por sua vez, informava ao Planalto que não havia o que temer com os votos da bancada governista pernambucana no Colégio Eleitoral. (Anexava uma lista de nomes.)
O SNI grampeava os telefones dos militares dissidentes e colecionava os nomes dos brasileiros que deviam ser presos no aeroporto ao regressarem do exílio.
Nesse clima, Otto escreveu a Castello:

"Eu não creio em mais nada. Mas estou cheio de ira e ternura
CCB,
Você tem estado admirável, com uma exceção e meia.
Não deixe de dizer tudo. Já passamos da idade do silêncio. Você tem a tribuna. Conquistou autoridade. Repercussão. Diga. Diga tudo. Não se acomode. Não deixe nunca que o salário seja parecido com o suborno. Diga. Proteste contra essa estúpida mania que há hoje no Brasil de nos assustar a todos com a assombração do arbítrio revigorado. De novo Ato Institucional. Ato Institucional é a puta que os pariu. Por que se sentem donos do Brasil? Quem lhes deu esse mandato tomado a força? Não tenhamos medo da força. As forças armadas felizmente estão divididas. A renda, ainda não. As forças armadas sempre estiveram divididas. Política no Brasil sem militares não existe. Sou hoje um militarista confesso. Apenas escolho os militares que me parecem melhores, que não estão do lado desse nefando clube do poder, guarda pretoriana que segura a vaca para uns poucos mamarem. Vão mamar na puta que os pariu. Não sejamos servos dessa gente. Diga, Castelinho. Diga tudo. Saiba da sua importância. Orgulho-me do papel que você representa. Da missão que você tem. Não banque o cético que a vida, a sua, já provou que você não o é.
No mais, aqui vai o livro do Dalton, sempre envolvido com os admiráveis continhos dele, uma espécie de masturbação adolescente aos 80 anos.
Eu não creio em mais nada. Muito menos em literatura. Mas estou cheio de ira e ternura. Guarde a ternura, dirija a cólera contra os nossos pretensos tutores. Vão tutelar a puta que os pariu. Perdoe citar tantas vezes essa senhora, a puta que os pariu. Mas ela está na ordem do dia.
Abraço do leitor fiel e admirador irretocável.
Rio, 6 de setembro de 1978 (véspera da Independência de merda)."

O amigo deprimido
Junho de 1970: Otto fala de uma depressão e festeja os 50 anos de Carlos Castello Branco:
"Caí naquela depressão que me assalta de vez em quando -por que, Santo Deus? Sei lá! Depressão neurastênica, vontade de ficar quieto, calado, macambúzio. Me custa até a simples locomoção doméstica. Para sair de casa é como arrancar uma tonelada inerte e sem rodas ladeira acima.(...)
A sua diária coluna cívica, de faróis altos, agora até mais bem escrita (é a Academia?), é um testemunho da sua presença, da sua recusa de se casar com o tédio e a depressão. Sujeito espantoso, você! Como é que você consegue? Me ensina esse segredo, siô! Você tem uma fibra danada. Se alimenta no deserto, na caatinga do Piauí, com meia sardinha por seis meses."

Patrulheiro literário
Outubro de 1992: Otto vigia o estilo do amigo, combatendo duas impropriedades. Uma, o esbanjamento do verbo colocar, vinha do jargão da esquerda estudantil:
"Acho imperdoável você escrever que o Agenor 'tentou colocar para o presidente', etc. COLOCAR, Castello? PeloamordeDeus! Até você, Bruto? Até você, com essa mania de COLOCAR?! Santo Deus, a língua acabou! Seu pai, que acharia seu pai dessa indigência de estagiária da PUC? E já que estou com a mão na massa, outra: você escreve que 'a democracia brasileira pode gerar um novo roteiro, etc.' PelamordeDeus Castelinho! Carlos Castello Branco! GERAR? Tudo agora GERA. Isso gera (sujeira) sem parar. Nada causa, provoca, etc. Só GERA! Até você? Até você!"

Calendário
É dura a vida do monarca. A semana estava acabando, o país correndo o risco de entrar numa crise política e faltava-lhe uma assessoria capaz de responder à seguinte pergunta:
"Se eu resolver partir para o plebiscito amanhã, quando é que os eleitores vão às urnas?"
Um especialista assegura que liquida a fatura em abril. O outro diz que antes de junho é impossível.

Os globalitários e o Mercado ExtraTerrestre
O "Times", de Londres, e o "Le Monde Diplomatique", da França, presentearam seus leitores com duas pérolas de inteligência.
No "Monde", Ignacio Romanet cunhou a expressão "regimes globalitários". Eles são os sucessores dos regimes totalitários. Nestes o poder era exercido por um partido único que não admitia oposição organizada, subordinando os interesses das pessoas aos do Estado.
Os regimes globalitários repousam sobre os dogmas da globalização e de um pensamento exclusivo na formulação da política econômica, subordinando os direitos sociais dos cidadãos à razão competitiva, entregando à banca o controle das sociedades. (Diferem os totalitários dos globalitários porque um fuzilava pessoas, e o outro fuzila empregos, o que não é pouca coisa.)
O "Times" publicou uma peça de futurologia: o artigo "Explorando os Mercados Extraterrestres", do "Jornal dos Investidores", publicado em 2.016. Trata do impacto dos papéis da Companhia de Força e Luz de Marte, jóia dos MET (Mercados Extraterrestres). Graças a ela o Produto Planetário Bruto (PPB) marciano cresceu 1.000% num só trimestre.
Os MET surgiram depois da exaustão dos mercados emergentes da Terra, ocorrida no início do milênio. Os papéis da Guiné tinham perdido o encanto, como já sucedera com os títulos de Cuba e do Suriname. Diante da escassez de mercados, secaram as fontes de financiamento dos grandes fundos de pensão americanos. O mercado foi para o espaço depois que sofreu uma pressão de aposentados ilustres como Bob Dylan e Bruce Springsteen, que lideraram grandes marchas de protesto pedindo melhores pensões.

Conta aberta
Durante a noite de quinta-feira, o ministro da Reeleição, Sérgio Motta, tinha 300 votos garantidos a favor da emenda que permite a reeleição de FFHH.
Oito abaixo do nível d'água. Pelo menos 20 abaixo do nível de segurança.

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