São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 1997
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Vale: racionalidade e interesse nacional

LUCIANO COUTINHO

O processo de privatização da Companhia Vale do Rio Doce é uma demonstração cabal da lamentável falta de estratégia de longo prazo do governo FHC.
A privatização é colocada apenas como um bem em si -sem qualquer outra consideração a respeito dos objetivos de desenvolvimento a longo prazo (e.g. impactos sobre a competitividade do conjunto da economia, condições de gestão, características dos controladores, esvaziamento da capacidade nacional de decisão etc.).
Consta que o presidente fica incomodado com a pecha de "neoliberal", mas, na prática, a política de privatização do seu governo -por falta de qualquer estratégia- é ortodoxamente liberal.
Essa visão é coroada pela destinação escolhida pela equipe econômica para os recursos da privatização: simplesmente a de cancelar dívidas. Não é à toa, portanto, que vem crescendo a resistência política à privatização da CVRD.
A recente descoberta de uma importante província mineral em Carajás cria uma ocasião para se repensar o futuro da Vale.
Desde logo, é de elementar bom senso postergar o atual cronograma da privatização, visto ser indispensável avaliar cuidadosamente a extensão e a qualidade das novas jazidas, que incluiriam cobre, ouro, platina, irídio e outros metais.
Mas, além da reavaliação do potencial econômico é urgente efetuar uma reflexão a respeito do papel e relevância da CVRD.
Sendo a maior mineradora e exportadora mundial de minério de ferro, detentora de importantíssimos meios logísticos e de transporte e ainda produtora de várias outras commodities (alumina, alumínio, ferro-silício, papel-celulose e outros minérios), a Vale é uma peça chave no oligopólio global das grandes empresas de mineração.
Seja escusado sublinhar, também, a sua evidente importância para a economia de vários Estados da Federação.
Por conseguinte, a privatização da CVRD não deveria ser efetuada sem determinadas salvaguardas, a saber:
1. assegurar que os futuros controladores tenham como objetivo o pleno e integral desenvolvimento das oportunidades rentáveis de negócio em todas as áreas colocadas ao alcance da empresa;
2. assegurar que a empresa continue contribuindo para o desenvolvimento tecnológico, regional, social e para o respeito às normas ambientais;
3. garantir que o centro de decisão a respeito da sua estratégia permaneça no país e que seja preservada a sua capacitação gerencial e técnica;
4. assegurar que a Vale continue funcionando como importante parceira/associada a outros grandes grupos privados nacionais em empreendimentos conjuntos e sinérgicos.
Do ponto de vista dos objetivos acima seria inadequado e pouco inteligente, para dizer o mínimo, que a CVRD viesse a ser controlada por grandes consumidores estrangeiros (ou mesmo nacionais) de minério ou por grandes empresas mineradoras rivais (australianas, sul-africanas etc.).
Sob o controle de grandes consumidores (e.g. japoneses) a Vale correria o risco de ser transformada num "centro de custos", sendo a sua estratégia de desenvolvimento subordinada à lógica dos empreendimentos siderúrgicos e metalúrgicos à jusante.
No caso do controle cair nas mãos de um grupo rival estrangeiro, a estratégia da empresa também ficaria subordinada a outras prioridades de prospecção, desenvolvimento tecnológico e gestão que não necessariamente maximizariam o potencial de desenvolvimento das atividades no país nem tampouco seriam plenamente exploradas as parcerias e associações com outros grupos nacionais.
Correr-se-ia, nos dois casos, o risco de desmantelamento parcial da capacitação profissional e tecnológica acumulada na empresa. Sob o modelo atual de venda, o risco de perda de controle nacional da Vale é bastante elevado.
A pressa em privatizar a CVRD vendendo imediatamente um "pacote de controle" sob o argumento de que com isso se ganharia um "prêmio" adicional é duvidosa.
A experiência internacional de privatização no setor siderúrgico, incluindo países como Suécia, Áustria, Chile, Finlândia e Taiwan mostra que os processos gradualistas e sequenciados produziram melhores resultados, pelas razões seguintes: 1) evitaram as fortes variações cíclicas intrínsecas ao setor que promovem oscilações de preços e dos valores de mercado das empresas; 2) permitiram que uma transição mais ordenada em direção à gestão compartilhada com o setor privado valorizasse mais o preço final de venda efetuada em pacotes sucessivos e mais pulverizados.
É importante frisar que o lançamento gradualista de pacotes de ações não implica em desmembramento da empresa, cujas atividades-chave devem permanecer integradas.
Controle nacional
Finalmente, parece essencial que a modelagem da privatização maximize a probabilidade de controle nacional da Vale sob a liderança de grupos com competência comprovada na área mineral.
Seria oportuno o estímulo governamental à formação de alianças entre grupos nacionais com poder financeiro para vencer a disputa e, nesse sentido, os fundos de pensão despontam como parceiros ideais.
Os fundos, que já dispõem de posição relevante na CVRD, deveriam ser articulados a um ou mais consórcios de grandes empresas nacionais para respaldá-los.
Nesse sentido é estranho que o governo venha, até o momento, marginalizando os nossos fundos de pensão do processo.
A CVRD é um importante patrimônio brasileiro e não deve ser alienada simplesmente para "fazer caixa" para o Tesouro e cancelar encargos de juros inflados pelo desajuste da própria política macroeconômica do governo.
A sua privatização só deveria ser empreendida sob um conjunto de salvaguardas que preservem o interesse nacional e da sociedade, mantido, sempre, o seu centro de decisão no país.
A privatização inconsequente e sem estratégia deve ser obstada por todas as forças políticas e sociais que ainda prezam a soberania nacional e a racionalidade de longo prazo.

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