São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 1997
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UM POETA ENTRE OS BÁRBAROS

JOSÉ PAULO PAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

No ano 8 da nossa era, um édito imperial baniu para sempre de Roma o seu poeta mais festejado, aquele cujos versos galantes eram cantados em festins, rabiscados nos muros das encruzilhadas e pintados nas paredes das casas de Pompéia. Está-se falando de Públio Ovídio Nasão, autor da "Arte de Amar" e das "Metamorfoses", e último grande poeta da época de Augusto. Ele foi contemporâneo de Virgílio, Propércio, Horácio e Tibulo, e seu desaparecimento, no ano 17 d.C., assinalou o fim dessa época de ouro da literatura latina.
Ovídio morreu desterrado em Tomos, uma vila à beira do mar Negro ou Ponto Euxino, no local onde hoje se ergue a cidade de Constanza, na Rumânia. Àquela época, era uma região totalmente inóspita, de longos e rigorosos invernos, habitada por bárbaros getas e sármatas que viviam em pé de guerra contra os dominadores romanos. Longe dos belos jardins da sua mansão de Roma, afastado para sempre do aconchego de seus familiares e amigos da alta roda, o poeta lá viveu os seus últimos anos, encurtados pelas privações e provações de um modo de vida primitivo que não tardou a lhe combalir a saúde.
Até hoje permanecem obscuras as verdadeiras causas que levaram Augusto a exilar para os confins do império um poeta a quem vinha distinguindo com os seus favores e a quem acolhia em seu palácio. O pretexto para o intempestivo édito de banimento teria sido a imoralidade da "Arte de Amar", cujos conselhos de sedução amorosa induziriam seus leitores ao adultério. Isso num momento em que o todo-poderoso imperador de Roma estava empenhado, baldadamente embora, em moralizar os costumes do patriciado.
Como a "Arte" já circulava havia vários anos e não era mais imoral que outras obras livremente lidas naqueles tempos de relaxamento, aventaram-se razões agravantes para o édito. Uma delas seria Ovídio ter acobertado os amores clandestinos de uma neta do imperador, que acabou sendo também exilada pelo avô. Outra seria a malevolência de Lívia, esposa de Augusto, contra o poeta, por ele estar ligado a um círculo palaciano contrário à Tibério, filho do primeiro casamento de Lívia, a qual ambicionava para ele o trono do império.
Fossem quais fossem as razões do rancor de Augusto contra Ovídio, o certo é que nem as reiteradas súplicas do poeta, nem as de sua mulher ou de amigos seus influentes, conseguiram induzi-lo a revogar o édito ou mudar para região menos inóspita o lugar de banimento. As súplicas de Ovídio estão perpetuadas em duas coletâneas, as "Tristes" e as "Pônticas", que lhe reúnem os poemas do exílio. O lastro autobiográfico e os acentos do tocante desespero que galvanizam esses poemas dão-lhes um vigor expressivo e um interesse humano raros de encontrar-se na lírica da Antiguidade, em que o gosto da imitação e o recurso sistemático a um elenco de motivos mais ou menos fixos continham as efusões da subjetividade dentro dos quadros do convencional. Os poemas ovidianos do exílio rompem os limites desse enquadramento para fazer soar, numa antecipação de séculos, a voz do Eu romântico e pós-romântico que, no desfrute dos "seus juízos subjetivos, alegrias e admirações, dores e sensações" -a citação é de Hegel-, toma consciência de si e do seu próprio estar-no-mundo.
Para se ter uma idéia da distância que separa a arte graciosamente maliciosa e frívola dos poemas de juventude de Ovídio da dramática gravidade dos seus últimos poemas é instrutivo comparar a peça dos "Amores" (I: 5) com as das "Tristes" (V: 7) e das "Pônticas" (I: V) para aqui trazidas em tradução. Os "Amores", escritos quando o poeta ainda não contava 20 anos de idade, estão compostos no verso de eleição da poesia erótica latina, o chamado "dístico elegíaco", formado de dois versos de medidas diferentes. Esse verso procede da antiga poesia grega, onde era usado nas inscrições funerárias; mais tarde, desvinculou-se dessas conotações entre fúnebres e lamentosas. Estas, entretanto, vão reaparecer nos dísticos dos poemas ovidianos de exílio, a cujo tom de desalento e tristeza quadra bem o adjetivo "elegíacos".
Enquanto a peça dos "Amores" versa um tópico tradicional da lírica amorosa, qual seja a descrição dos encantos do corpo feminino, a elegia das "Tristes" mostra-nos Ovídio a fazer da poesia escrita em Tomos seu canal de comunicação com a pátria que fora forçado a abandonar para sempre; daí falar ele em "carta" logo no verso de abertura e confessar mais adiante que no "estudo", ou seja, no exercício da atividade intelectual, encontra o único lenitivo ao seu alcance: "Nos versos busco olvido das misérias que me afligem". Além da breve, mas viva descrição da aparência física e dos costumes selváticos dos bárbaros entre os quais habita, há nessa elegia um pormenor altamente expressivo da dramática do exílio: a perda progressiva da língua-mãe pelo "descostume" de usá-la; para não a perder e à falta de interlocutores, o poeta fala consigo próprio e se esforça por lembrar "palavras dessuetas" a fim de manter viva sua identidade de "poeta romano".
Se, a despeito de serem cartas versificadas, as "Tristes" se designam ainda como "elegias" por causa dos dísticos em que estão vazadas, as "Pônticas", embora compostas no mesmo tipo de verso, já se declaram "epístolas" e trazem amiúde, logo abaixo do título, o nome de seu destinatário. A que adiante se vai está endereçada a Fábio Máximo, um dos poucos amigos que permaneceu leal a Ovídio. Tanto assim que, na viagem para Tomos, acompanhou-o pessoalmente até Brindes, sem medo de comprometer-se aos olhos de Augusto pela sua lealdade ao poeta, a quem muitos outros supostos amigos voltaram as costas tão logo o viram cair em desgraça. Nessa epístola a Máximo, discute Ovídio o porquê de continuar escrevendo e justifica a espontaneidade ("Contento-me em compor o que me venha facilmente"), tanto

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