São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 1997
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Zelig ou uma estratégia presidencial

JOSÉ LUÍS FIORI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Não sou eu quem navega/ Quem navega é o mar." Paulinho da Viola

Contam alguns exilados que viveram no Chile, nos anos 60, que um dia por lá passou um cantor brasileiro de sucesso a quem foi encomendado um hino de louvor à reforma agrária, o terror, na época, da classe média e dos setores mais conservadores da sociedade chilena. Até aí nada de mais. O problema é que o compositor brasileiro decidiu estrear a sua composição num concurso de miss Chile, realizado frente a um seleto público de classe média, que se pôs a vaiar com raiva crescente o nosso menestrel. Mas, à medida que aumentavam os apupos, ele reagia cada vez mais entusiasmado, pedindo que o acompanhassem, cantando a canção. E, mesmo quando começaram a chegar ao palco objetos um pouco mais contundentes, foi necessária a intervenção direta, explícita e manual dos organizadores para remover o cantor da cena.
O mais provável é que essa história não passe de uma lenda, mas hoje dá para perceber que ela tem a força de uma parábola premonitória sobre a política contemporânea -o nosso cantor estava muito à frente de seu tempo. Hoje por toda a parte multiplicam-se os governantes rejeitados pela opinião pública que se negam a reconhecê-lo e seguem em frente, eufóricos, com as mesmas políticas impopulares. E alguns deles, para surpresa geral, chegada a hora, ainda acabam reelegendo-se uma e até duas vezes. Frente a isto, a ciência política, pasma, não consegue encontrar explicações.
O que estamos assistindo no Brasil não é exatamente a mesma coisa: entre nós, o governo é que é cada vez mais impopular, mas o presidente não. A impopularidade do governo é bastante compreensível depois da estabilização da moeda e de algumas reformas constitucionais inacabadas feitas em 1995, ficou paralisado e permanece em estado de letargia. Durante 1996, não fez absolutamente nada, nem mesmo reformas constitucionais, nenhuma obra, nenhuma decisão de vulto. Apenas declarações oficiais e informes macroeconômicos que vão variando segundo a ocasião.
Por isto, é um governo que, afora suas autoridades econômicas, passa despercebido da população, mesmo a mais esclarecida, que não é capaz de lembrar o nome dos seus ministros (que em regime presidencialista, como o nosso, só poderiam ser mudados -atendendo aos apupos- pelo próprio presidente da República). Mas exatamente aí começa a nossa originalidade, pois o presidente não só não muda os ministros mais impopulares ou ineficientes, como tampouco toma qualquer outra decisão. Frente à impopularidade do seu governo, ele responde distanciando-se. Depois da trapalhada do Banco Econômico, das suas inseguranças na condução do caso Sivam e do fracasso de "mobilização" de sua base parlamentar a favor da aprovação da reforma da Previdência, o presidente adotou esta nova postura e afastou-se cada vez mais do seu partido, da sua coalizão, do governo, do país e, às vezes, parece que de si mesmo. Como resultado, a sua popularidade sobe, enquanto a do seu governo desce.
Como se explica o sucesso desta mágica? Não é fácil de responder, mas desde então seus adversários transformaram-se em abstrações: a burrice da esquerda, o corporativismo dos funcionários públicos, a caipirice dos brasileiros, o provincianismo das oligarquias, a falta de sinceridade dos políticos etc.
À primeira vista, apenas uma forma discreta de fugir a confrontos mais desagradáveis, mas, de fato, uma maneira professoral e autoritária de projetar-se como representante de um consenso tão extenso e incontestável, que não tem mais adversários dignos de menção. Seus discursos no estrangeiro ficaram cada vez mais acadêmicos, defendendo teses e políticas que não são as do seu governo. Em entrevistas, quando fala da sua terra, do seu povo e do seu governo, parece estar falando de coisa alheia, passando a nítida impressão de ser apenas um analista ou um estrangeiro, uma espécie de procônsul romano visitando uma província no norte da África. Em relação às eleições municipais, pairou no espaço e, diante dos resultados mais adversos, fez que não viu, procurando a imediata aproximação com os novos vitoriosos. Uma estratégia pessoal que lembra de certa maneira Zelig, o genial personagem de Woody Allen que mudava sua personalidade a seu bel-prazer.
Mas como o presidente inventou uma coisa tão original e eficiente, capaz de impedir a sua contaminação pela mediocridade do seu governo? Muitos analistas têm buscado a resposta no passado ou na personalidade do presidente. Ouve-se dizer com frequência, por exemplo, que "o presidente nunca soube decidir, sempre protelou quando os problemas eram mais complicados"; ou "o presidente sempre se manteve distante de seus auxiliares, devido a uma personalidade um pouco vaidosa e arrogante"; ou, então, "o presidente sempre foi uma pessoa cosmopolita, que nunca se envolveu com coisas menores" etc. etc. Tudo isso pode ter algo de verdadeiro, mas não é convincente.
Na verdade, este comportamento não é original dentro do quadro político contemporâneo. Nesse sentido, o presidente só está seguindo uma "onda mais geral", no que reafirma a inteligência que sempre demonstrou para situar-se à frente das tendências vitoriosas. E não há a menor dúvida que, hoje, os ponteiros da bússola que assinala a direção do sucesso estão apontando para o surpreendente fenômeno da reeleição de Clinton, depois de um longo período de impopularidade.
O que a experiência de Bill Clinton nos ensina de útil para entender ou prever a nossa estratégia presidencial? A história é conhecida. Em 1993, Clinton trouxe o Partido Democrata de volta à Presidência da República, depois de 12 anos de governo republicano -a "era Reagan"-, que repôs numa posição de hegemonia mundial as idéias liberal-conservadoras. Apesar de acusado de vários escândalos sexuais, Clinton venceu e trouxe consigo um programa de reformas voltadas para a proteção das minorias e para a ambiciosa universalização do sistema de saúde pública norte-americano.
Em 1995, entretanto, o partido de Clinton foi derrotado nas eleições legislativas, e a oposição republicana se transformou em maioria no Congresso, liderada pela figura irascível, radical, de Newt Gingrich, que propunha um programa de reformas sintetizadas em dez pontos que elevavam à enésima potência o ideário conservador e anti-social de Ronald Reagan. Posto na defensiva, Clinton se ausentou praticamente do governo durante grande parte de 1995, fazendo uma arriscada aposta no desgaste de seus adversários -que acabaria ocorrendo por conta do seu radicalismo e destempero. Depois de um tempo, Clinton "retornou" com um novo discurso, defendendo posições quase idênticas às da oposição republicana. E foi então que ocorreu a primeira grande surpresa: o seu prestígio pessoal foi ficando cada vez maior do que o do seu partido.
Daí ao passo seguinte, foi um pulo: no dia 23 de janeiro de 1996 ele declarou ao Congresso norte-americano que "a era do Estado intervencionista acabou" e foi ovacionado pelos seus antigos opositores. Depois disso, não teve mais nenhuma inibição e assinou vários decretos e projetos que enterraram de vez o ideário democrata do New Deal de Roosevelt e o transformaram no principal porta-voz das teses históricas de seus antigos adversários. A diferença entre Clinton e os republicanos ficou reduzida à sua imagem de maior equilíbrio e racionalidade, favorecida pelo comportamento desequilibrado de Newt Gingrich, já então presidente do Congresso.
Essa transfiguração foi tão completa e convincente que, nas eleições presidenciais de 1996, Clinton se reelegeu facilmente, apesar das renovadas acusações de corrupção e "má conduta" sexual. Uma mudança de papéis tão bem feita que, de passagem, obrigou a ala esquerda do seu partido a apoiá-lo, com base no argumento defendido pelo senador e líder negro Jesse Jackson: Clinton era a única maneira de barrar a direita republicana de Gingrich. O fantástico, nisso tudo, é que, após eleito, as principais revistas e jornais especializados do mundo seguem se perguntando o que é e o que fará afinal o senhor Clinton no seu segundo mandato.
A revista "The Economist" comemora sua vitória dando-lhe a fotografia de capa acompanhada da frase emblemática: "now tell the truth" (agora diga a verdade). Enquanto isso, pesquisas de opinião indicam que metade de seus eleitores pensam que ele fará o que a outra metade pensa que ele não fará. Isto é, Clinton conseguiu a proeza de ganhar uma eleição presidencial nos Estados Unidos sem que ninguém saiba ao certo qual seja a sua identidade política e mesmo pessoal. A única coisa certa até o momento é que, uma vez eleito, Clinton começou imediatamente a escolher os seus novos auxiliares nas "altas finanças" de Nova York e no próprio Partido Republicano, dispensando de imediato os membros de sua velha equipe, situados mais à esquerda do espectro político norte-americano, entre eles o conhecido ministro do Trabalho Robert Reich.
Perplexos, o "New York Times" e o "Washington Post" ainda se perguntam como foi possível eleger Clinton apesar de todas as acusações que pesam sobre ele e acabam prevendo um "disastrous second term". A "Newsweek" reforça essa perplexidade, ao constatar que 54% dos norte-americanos consideram Clinton desonesto e, assim mesmo, votaram nele na eleição com mais alta abstenção na história dos Estados Unidos.
Por quê? Difícil de responder, mas a imprensa internacional levanta algumas hipóteses: para uns, acabou a era em que os presidentes deveriam ser um paradigma; para outros, questões de "caráter" já não interessam a ninguém numa era individualista e "eficientista"; e, por fim, muitos explicam o fato pela apatia e indiferença da população que não vota e pela auto-satisfação dos que votam e se deram bem na "era Reagan".
No essencial, entretanto, o fenômeno Clinton é apenas a manifestação mais radical e atual do que já vem ocorrendo, há algum tempo, no mundo inteiro. Por todo lado a apatia política e o desencanto com a democracia crescem à medida que as diferenças entre os partidos diminuem. A alternância no poder parece cada vez mais irrelevante depois de sucessivas experiências em que as oposições, uma vez vitoriosas, alteram os seus discursos e seguem a mesma política de seus antecessores.
Esse fenômeno vem se generalizando na Europa Central, onde anticomunistas e ex-comunistas se revezam nas cadeiras presidenciais para fazer o mesmo. Já vínhamos assistindo há anos, na Inglaterra, a ginástica transformista do líder trabalhista Tony Blair, visando a conquistar eleitores com um programa cada vez mais parecido aos de seus adversários conservadores.
Algo parecido ocorreu recentemente, do outro lado do Canal, onde Jacques Chirac adotou as políticas do antigo primeiro-ministro Edouard Balladur, depois de atacá-los violentamente durante a campanha presidencial de 1995, e, agora, rejeitado pela opinião pública, mantém-se impávido e dedica-se a fazer política externa gaulista (que sempre foi do gosto dos franceses). Logo depois, assistimos ao senhor Boris Ieltsin, derrotado nas eleições legislativas, chamar, de imediato, alguns adversários da véspera para o seu ministério, inclusive -num gesto sem precedentes- um dos seus principais adversários no primeiro turno das últimas eleições presidenciais -o general Lebed-, antes mesmo que se realizasse o segundo turno das eleições. Clinton, portanto, foi apenas um pouco mais longe: se desfez lentamente de toda e qualquer identidade até o ponto em que, como Zelig, pôde entrar e sair impunemente do seu partido e do dos outros.
Esses desdobramentos políticos colocam sob suspeita uma condição elementar do exercício democrático: a alternância no poder. E o mais fantástico neste caso é que se está esterilizando a função da "alternância" pelo próprio exercício da alternância -que parece cada vez mais irrelevante. Este é o resultado mais palpável do processo pelo qual a nova realidade imperial e monocorde do mundo econômico submeteu e esvaziou o mundo da política, em que as divergências agora se reduzem a questões de detalhes, de "timings", de graus de radicalidades e nada mais. Não porque tenham desaparecido as diferenças entre esquerda e direita. Isso é uma bobagem. Simplesmente porque a esquerda foi derrotada de forma fragorosa e universal, dando espaço a uma nova situação "objetiva", na qual suas idéias não têm a menor possibilidade de serem apresentadas sem desestabilizar de imediato uma ordem econômica que já lhe é adversa, mas que poderia ser ainda pior no curto prazo, se fosse desestabilizada.
Por isso, hoje, vemos no mundo todo, pelo lado dos partidos de esquerda que se movem pela adesão implacável à lógica realista do "mercado eleitoral" uma "corrida à direita", assinalada pela progressiva incorporação aos seus programas daquilo que a imprensa internacional tem chamado de "idéia única" -o programa econômico deflacionista, desregulacionista e privatizante...
O resultado esperável de tudo isso, no longo prazo, não será apenas o esvaziamento da função presidencial, mas o esclerosamento do próprio sistema democrático. Não por acaso, aliás, os eleitorados tendem cada vez mais a reeleger autoridades, mesmo quando impopulares. É o que nos ensina a história política recente: a "era Reagan" durou 12 anos; a "era Thatcher", prolongada por John Major, prolonga-se na Inglaterra há 17 anos; Helmut Kohl é primeiro-ministro dos alemães há 13 anos; Felipe Gonzalez governou a Espanha durante 12 anos e, no Japão, o Partido Liberal Democrata voltou ao governo, no qual se mantém há 50 anos de forma quase ininterrupta.
Como se pode ver, nem o Brasil nem o seu presidente vêm cometendo um pecado original. Também nisso estamos seguindo a boiada e, se o que já assistimos neste último ano foi um enorme empobrecimento do debate político nacional, o que assistiremos daqui para frente, apesar das aparências, será um progressivo estreitamento da competição política, reduzida a uma mesmice feita de abraços, visitas e convites mútuos para jantar e governar em família, numa espécie de falsa luta de boxe das que costuma organizar o conhecido e fanfarrão Don King.
Aliás, enganam-se rotundamente alguns analistas mais ingênuos que pensam que o governador Paulo Maluf retornará ao cenário nacional como representante de um populismo ultrapassado, quem sabe até com um discurso ao gênero do velho desenvolvimentismo. Paulo Maluf, com toda certeza e completa correção estratégica, deverá assumir, daqui para frente, uma posição sempre mais liberal do que a do governo, mantendo a liberdade, como opositor, de somar ao seu discurso liberal, uma crítica dolorosa ao viés anti-social do governo "social-democrata" de FHC. Além disso, há que ter presente que Maluf retorna ao cenário nacional não apenas mais experiente do que nos anos 80, mas também trazendo consigo um naipe expressivo de interesses nacionais e internacionais.
Por isso mesmo, como o presidente tem se mostrado bem mais inteligente que seus intelectuais, o mais provável é que ele aprofunde sua postura Zelig, sua "ausência" do cenário político nacional, apostando que o seu adversário acabará se desgastando por suas próprias palavras e obras, como aconteceu com Newt Gingrich nos EUA. Neste caso, contará de imediato com a adesão entusiástica de setores de esquerda que reencontram afinal um objetivo na vida: barrar o direitismo de Maluf. O mesmo que no caso do senador Jesse Jackson.
Com isso, o presidente Cardoso estaria liberado para deslizar mais à direita, acelerando a sua política liberal e aprofundando os seus compromissos com a comunidade internacional por meio da mão visível de sua inefável "equipe econômica". Tudo o que venha a fazer nessa direção estará legitimado, mesmo aos olhos de seus amigos intelectuais social-democratas, mas sobretudo aos olhos dos "grandes eleitores" deste país, que deverão perceber nele, cada vez mais, uma aura de equilíbrio, moderação e racionalidade sublinhada pelos presumíveis e esperados "excessos de caráter e de estilo" do seu principal opositor.
Responderá a realidade aos desígnios estratégicos do presidente, como ocorreu nos EUA? Não há como respondê-lo. Mas, se ele lograr reeleger-se presidente da República, daqui a dois anos, o mais provável é que também aqui, no Brasil, a estratégia e o estilo do presidente acabem tendo um alto custo para o sistema político e a democracia. Como aparentemente as novas regras permitirão a reeleição de todos os chefes de Executivo, dispensando até a sua prévia desincompatibilização, pode-se prever uma renovada oligarquização do poder.
E, se somarmos a isso o novo hábito de mudar de discurso segundo a ocasião, valerá também para o presidente Fernando Henrique Cardoso a avaliação de William Kristol -um analista conservador norte-americano- sobre o impacto da estratégia de Clinton sobre a política norte-americana: "Se é verdade que o presidente acabou assumindo as teses republicanas (no caso brasileiro, as do novo liberalismo das velhas oligarquias), na maioria das questões relevantes, o clintonismo, sua informalidade manipuladora, sua insinceridade sem escrúpulo, acabarão infectando (...), muito provavelmente, a totalidade do corpo político do país".

José Luis Fiori é doutor em ciência política pela USP, livre-docente e professor titular das Universidades Federal e Estadual do Rio de Janeiro.

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