São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 1997
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O anticubano JFK adorava havanas

WILLIAM STYRON
DA "VANITY FAIR"

Como milhões de outras pessoas, assisti atônito e fascinado ao delírio aquisitivo que invadiu a Sotheby's, transformando a mais humilde bugiganga de Camelot em um objeto de fetiche pelo qual as pessoas se atropelavam para oferecer fortunas (Camelot, sede da lendária corte do rei Artur e de sua Távola Redonda, virou também o apelido pelo qual se designava o casal Kennedy e sua "corte").
Uma pilha de revistas velhas, entre elas a "Modern Screen" e a "Ladies' Home Journal", foi arrematada por US$ 12,6 mil.
Uma foto de um retrato de Jackie (Jacqueline Kennedy Onassis) pintado por Aaron Shikler -atenção, não o retrato, mas uma simples foto dele- foi vendida por US$ 41,4 mil. A Sotheby's havia avaliado a foto em US$ 50 a US$ 75.
Um contador suíço de tacadas "Golf-Sport", de valor estimado pela Sotheby's em US$ 50 a US$ 100, foi arrematado em abril passado por insanos US$ 28,7 mil.
Mas com certeza um dos mais grandiosos dos troféus leiloados, pelo menos em termos de seu preço exagerado, foi a caixa de nogueira em que John Kennedy guardava seus charutos.
Milton Berle dera-a de presente ao presidente dos EUA em 1961, depois de afixar à caixa uma placa com os dizeres "To JFK. Good Health -Good Smoking, Milton Berle -1/20/61" (Para JFK. Boa Saúde -Bom Fumo, Milton Berle -20/1/61).
Em 1961, o comediante pagara entre US$ 600 e US$ 800 pela caixa. Em 1996, 35 anos mais tarde, o pobre Berle tentou recuperar a caixa na Sotheby's, mas foi obrigado a cair fora do leilão quando os lances chegaram a US$ 185 mil.
Aficionado
O vencedor foi Marvin Shanken, publisher da revista "Cigar Aficionado", que pagou US$ 574,5 mil por um objeto que os leiloeiros haviam avaliado em US$ 2.000 a US$ 2.500.
Mesmo a um preço tão espantoso, a caixa de charutos deve desempenhar um papel de mascote no destino da revista de Shanken, que já faz sucesso estrondoso.
Além de artigos sobre charutos e celebridades fumando charutos, traz matérias sobre pólo, golfe, hotéis requintados, carros antigos e muitos outros elementos obrigatórios a um estilo de vida realmente chique na década de 90.
Afinal de contas, John F. Kennedy não era estranho à vida aristocrática, e o que poderia ser mais apropriado como relíquia para uma revista sobre charutos do que a tumba na qual descansaram os havanas do último presidente americano a ser um legítimo fumante de charutos?
Nunca tive a oportunidade de ver a célebre caixa de charutos, mas, nas ocasiões em que estive com Kennedy, imaginei que deveria possuir uma delas para proteger seu estoque, pois abordava os charutos com o prazer e deleite de um -bem, de um aficionado.
Se eu me permitir uma cutucada proustiana em minha memória e recordar Kennedy nos momentos de descontração em que nossas vidas brevemente se cruzaram, posso quase sentir o aroma da fumaça dos havanas pelos quais desenvolvera uma queda tão impetuosa, tão "kennedyanesco".
Depois da tão correta era Eisenhower, era maravilhoso ter esse sujeito jovem ocupando o centro do palco, e em pouco tempo tornou-se comum ver o presidente posando com um charuto na mão, sem qualquer constrangimento ou expressão de desculpas.
Eu me tornara amigo de dois integrantes da equipe de John Kennedy, Arthur Schlesinger Jr. e Richard Goodwin, ambos defensores tão ardorosos dos charutos que fumá-los parecia constituir praticamente uma subcultura própria da Casa Branca.
Toda vez que eu os encontrava em Washington eles me faziam discursos sobre charutos.
Os de Havana eram "sine qua non", e eu, na condição de ignorante fumante de cigarros ainda apegado a um vício indesejado, via-me fascinado, mas um pouco perplexo, com aquela conversa sobre charutos, com os elogios efusivos expressos ao Montecristo de determinado ano e comprimento, com a descrição das embalagens e seus tons, com as sutis distinções entre os sabores de um Ramon Allones e de um Punch.
Obstinadamente, eu aferrava a minha fidelidade odiosa aos cigarros, mas, lá no fundo oculto do coração, invejava esses homens por sua devoção a outra encarnação do tabaco, a mudança de uma mera plantinha a um objeto evidentemente capaz de evocar sensações do mais puro deleite.
Evento social
No final de abril de 1962, fiz parte de um pequeno grupo de escritores convidados para o que acabou se revelando ser possivelmente o mais memorável evento social da presidência Kennedy. O evento em questão foi um jantar de Estado em homenagem a vários ganhadores do Prêmio Nobel.
Schlesinger e Goodwin foram responsáveis por minha inclusão entre os convidados -como eles mesmos dizem, Kennedy, na época, não fazia idéia de quem eu era-, e foi um prazer estonteante para minha mulher, Rose, e eu sairmos para a Casa Branca, numa agradável noite de primavera, na companhia do meu amigo James Baldwin, que se encontrava à beira de tornar-se o mais celebrado escritor negro nos Estados Unidos.
Eu me lembro que foi a única vez na vida em que fiz a barba duas vezes no mesmo dia.
Antes do jantar, as bebidas fluíram livremente, e uma corrente elétrica pareceu percorrer o ambiente quando JFK e sua linda mulher se uniram aos convidados e comandaram o evento.
Jack e Jackie chegavam a brilhar. Teria sido preciso ser anormal, talvez mesmo psicótico, para estar imune ao espantoso poder de sedução daquele casal. Mesmo os republicanos estavam boquiabertos.
Bebedeira
Eles eram realmente o casal dourado, e não estou tentando minimizar meu próprio maravilhamento quando registro que muitos dos convidados, tanto homens quanto mulheres, pareciam estar tão afetados pelo glamour reinante que seus olhos assumiram um olhar pasmo, catatônico.
Embora eu tenha conseguido manter meu autocontrole, embebedei-me antes da hora; mas esse fato não prejudicou minhas faculdades críticas quando se tratou de fazer uma avaliação do jantar.
Eu havia passado um tempo considerável em Paris e me tornara, até certo ponto, esnobe no tocante a vinhos e comida.
Mais tarde, no meu caderno de anotações, registrei o comentário ingrato de que, embora o Puligny-Montrachet 1959 servido com o primeiro prato tenha sido "mais do que adequado", eu achara o Mouton-Rothschild 1955 que acompanhou o "filet de boeuf" Wellington "carente de maturidade".
Considerei a sobremesa, "bombe Caribienne", "doce demais, uma verdadeira bomba".
Revendo essas anotações tantos anos depois, envergonho-me de minha própria grosseria (incluindo a observação em tom condescendente de que a refeição "foi sem dúvida melhor do que qualquer coisa que tenha sido servida por Ike e Mamie"), especialmente em vista da verve instigante e do ambiente feliz que dominaram.
Devido à colocação das mesas, vi-me sentado num ângulo reto em relação ao presidente, e estava a apenas um metro de distância dele quando se ergueu diante da cadeira e proferiu sua célebre piadinha no sentido de que a ocasião representava a maior reunião de grandes mentes ocorrida na Casa Branca "desde que Thomas Jefferson jantou aqui, sozinho".
Os Prêmios Nobel demonstraram sua apreciação por esse elogio elegante, gargalhando alto, e senti que as palavras haviam passado direto à imortalidade.
Fumaça
A Casa Branca era tudo, menos livre de fumaça, e a seguir os menos nobres presentes entre nós (entre os quais eu mesmo) acenderam seus cigarros.
Notei com meu mau humor e minha inveja costumeiros que muitos cavalheiros às mesas em volta do salão haviam começado a fumar charutos; entre eles figurava Kennedy, que conversava com uma belíssima moça de cabelos dourados, e obviamente ele se comprazia com ela tanto quanto com seu Churchill.
Depois do café passamos ao Salão Oriental para um concerto de música de câmara.
A seguir, quando a festa parecia estar chegando ao fim, e estávamos prestes a ser transformados em abóboras, tive a surpresa de ser informado por um ca

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