São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 1997
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Charuto embalava assuntos de Estado

WILLIAM STYRON
DA "VANITY FAIR"

Leia a seguir continuação do texto da pág. 1-16.
Enquanto eu me balançava, conversava com o renomado crítico Lionel Trilling, que, ao lado de sua mulher, Diana, era a única outra pessoa do mundo literário convidada a subir ao primeiro andar.
Também era o único outro fumante de cigarros, pelo que pude verificar -de fato, era um fumante voraz, com a aparência cansada de quem vive semiprivado de oxigênio-, e enquanto os outros desfrutavam seus charutões num ambiente de sociabilidade prazerosa, nós dois falávamos de livros e praticávamos o hábito solitário.
Foi só quando Schlesinger me pediu discretamente que deixasse o presidente sentar-se na cadeira de balanço, por causa de seu problema nas costas, que eu me dei conta de que JFK estivera de pé na sala havia algum tempo, educado demais para me expulsar de sua cadeira.
Constrangido, me levantei rapidamente e, quando Kennedy tomou meu lugar, pedindo desculpas, percebi que ele ainda acariciava seu Churchill.
O líder do mundo livre envolto em fumaça e balançando-se suavemente: foi essa a imagem de contentamento e descontração que levei comigo quando, depois da meia-noite, voltamos cambaleando de uma festa digna do nome.
Luta antifumo
Nos meses que se passaram antes que voltasse a ver Kennedy, travei uma luta demoníaca contra meu vício de fumar cigarros.
Graças a meus dois gurus da Casa Branca, também começava, vagarosamente, a saborear charutos.
O embargo contra Cuba, instituído oficialmente pelo próprio Kennedy, já estava em pleno vigor.
Os havanas haviam desaparecido da noite para o dia, e assim me vi comprando a segunda melhor opção, que na época era produzida nas ilhas Canárias. Esses charutos eram, na realidade, muito bons -muitos deles, excepcionais.
Mas eu ainda hesitava em dar o salto final. Embora tivesse plena consciência de estar solapando minha saúde com um vício que me fizera cativo desde a idade de 15, eu não conseguia fazer a transição para os charutos sem passar por convulsões de dúvida moral.
Na realidade, era vítima da visão dominante na época. Isso porque nos Estados Unidos, uma sociedade essencialmente puritana que é tão absolutista em seus pontos de vista acerca da saúde quanto o é em relação a muitas outras questões, não se traçava grande distinção entre charutos e cigarros.
Afinal, em um país que, alguns anos mais tarde, tomado de pânico quanto ao colesterol presente nos ovos, iria virtualmente banir esse alimento historicamente valiosíssimo da dieta nacional em lugar de apenas aconselhar moderação em seu consumo, era natural que o prazer relativamente inofensivo de fumar charutos com moderação fosse alvo do mesmo opróbrio que o vício letal do cigarro.
Charutos e cigarros
Se eu parasse de fumar cigarros, não faltariam titias velhas de ambos os sexos ansiosas por me dizer que os charutos eram igualmente nocivos. Mas é evidente que não o são, e de fato, diferentemente dos cigarros, possuem um efeito benéfico intrínseco.
Naquela época, as anotações que fiz para uma resenha (publicada em 1963 no "The New York Review of Books") do "Relatório da União dos Consumidores sobre o Cigarro e o Interesse Público", precursor do relatório original do diretor nacional de saúde sobre os perigos do tabaco, escrevi:
"É uma ironia amarga que em nossa sociedade obcecada pela saúde um vício tão destrutivo quanto o de fumar cigarros seja tolerado ou até promovido, enquanto o uso comparativamente benigno de charutos seja condenado como se fosse uma praga.
"Os charutos permitem um prazer genuíno; já o cigarro oferece um pseudoprazer, do mesmo tipo sentido por ratos de laboratório. O estigma associado ao charuto está tão relacionado à questão de classe econômica e social quanto com o moralismo mal direcionado.
"O hábito quase universal de fumar cigarros é domínio da imensa classe média, enquanto os fumantes de charutos se encontram nas extremidades superior e inferior da escala econômica. (Há sobreposições e intersecções, é claro, mas esse é o contorno básico.)
"Entre os fumantes de cigarros da classe média, o charuto é visto ou como o luxo excessivamente caro de banqueiros ou, na outra extremidade, como o hábito barato dos fumantes de White Owl que vão a bares de baixa categoria e ginásios de má reputação.
"Essa dicotomia é melhor ilustrada pelo personagem de quadrinhos dos anos 30 'Pete the Tramp' (o Vagabundo Pete): o mendigo sempre à cata das baganas dos charutos dos plutocratas, que ele pegava da calçada e empalava num palito de dentes.
"Os charutos nunca encontraram aceitação entre a grande massa média da sociedade.
"A ironia é agravada pelo fato de que White Owls e Dutch Masters realmente ofendem o olfato -o meu, com toda certeza- e que as mulheres, especialmente, com sua sensibilidade semelhante à dos canários, frequentemente se ofendem, com razão, na presença desses eflúvios.
"As mulheres a quem tanto incômodo causam os charutos baratos, produzidos em massa, ajudaram, sem sabê-lo, a gerar a má fama de todos os charutos.
"O que é tão fascinante é que essas mesmas mulheres, quando expostas à fumaça de um Montecristo de primeira qualidade, muitas vezes emitem sons indicativos de um verdadeiro desmaio de prazer -demonstrando, assim, que os charutos de alta qualidade não precisam ser alvos de preconceito perpétuo. Um dia as mulheres começarão a fumar charutos.
"Prevejo, também, que em algum momento do futuro, quando a sociedade se conscientizar dos temíveis perigos inerentes ao cigarro, muitos integrantes da classe média começarão gradativamente a fumar charutos -charutos de primeira qualidade, que também passarão a ser mais acessíveis a seus bolsos."
Alegro-me ao constatar que minha bola de cristal, tantas vezes tão lastimavelmente opaca, estava límpida e transparente quando redigi essas últimas palavras.
No verão seguinte deixei definitivamente de fumar cigarros -abruptamente, sem nada que amenizasse o corte.
Isso foi poucas semanas antes de Jack Kennedy nos convidar -Rose e eu- para um passeio em seu iate, o Patrick J.
Ele e Jackie atravessaram do Cabo a Martha's Vineyard, onde eu havia alugado uma casa, e nos levaram para um almoço totalmente descontraído a bordo do Patrick J.
Além de meus amigos John e Sue Marquand, que nos acompanhavam, o único outro passageiro era Stephen Smith, cunhado de JFK. Um barco da Guarda Costeira nos acompanhava de não muito perto, por razões de segurança, mas excetuando esse barco nós sete estávamos a sós com as ondas.
O mar estava moderadamente bravio, mas o álcool acalmou nosso "mal de mer". Os "bloody marys" servidos por um comissário filipino um tanto quanto desajeitado transbordavam dos copos.
Jack e Jackie e o casal Marquand, que se conheciam havia anos, batiam papo sobre amigos mútuos e variantes do "twist", enquanto a vitrola tocava outras músicas que faziam sucesso naquele ano; o ambiente geral antes do almoço era divertido, apesar do céu cinzento.
Situação racial
A conversa se tornou um pouco mais séria quando nos sentamos para comer. Naquela mesa, na cabina aberta do Patrick J. ninguém prestou muita atenção ao almoço desastroso.
Era uma piada maluca composta de cachorros-quentes frios com pãezinhos úmidos, ovos moles na gelatina, com as colheres sendo derrubadas no colo de todos os presentes pelo filipino nervoso; a cerveja estava congelada.
Em lugar disso nos envolvemos numa longa conversa abrangendo desde a política de Massachusetts até a situação racial que se tornava tensa no sul do país -evidentemente os acontecimentos violentos do outono anterior em Oxford, Mississippi, haviam abalado JFK-, passando por aquela piada velha e conhecidíssima sobre se Alger Hiss era ou não culpado (Kennedy achava que sim) e a evidente irritação do presidente com um artigo publicado no "The American Scholar", de autoria do crítico Alfred Kazin, questionando suas credenciais intelectuais.
Fiquei ao mesmo tempo divertido e impressionado com o fato de Kazin deixá-lo tão irritado.
Jackie passou boa parte do tempo com seus pés descalços, belos, porém um tanto quanto grandes, no colo presidencial. Em dado momento, JFK, num aparte pessoal a mim, me perguntou o que eu estava escrevendo e, quando lhe respondi que era um romance sobre Nat Turner, que liderou uma insurreição de escravos na Virgínia no século 19, se interessou imediatamente e me sondou para obter mais informações, que fiquei feliz em lhe dar.
Ele parecia fascinado com meu relato da revolta. Evidentemente a questão racial estava começando a preocupar Kennedy, assim como preocupava a quase todos na época. Naqueles tempos poucos norte-americanos haviam ouvido falar em Nat Turner. Eu disse a Kennedy algumas coisas sobre a escravidão de que ele obviamente nunca antes tinha ouvido.
Contrabando
Mais tarde, depois do sorvete e do café, o presidente entregou aos homens charutos Partagas, produzidos em Havana e envoltos em tubos prateados.
Enrolei o meu entre os dedos, com enorme prazer, procurando não abrir um sorriso óbvio demais. Estava ciente de que, sob o embargo contra os produtos cubanos, o charuto constituía produto de contrabando, e que o embargo havia sido promulgado pelo próprio homem que acabara de colocar o charuto em minha mão.
Por isso mesmo o Partagas se tornava ainda mais digno de ser preservado, pelo menos por algum tempo, dentro de seu tubo protetor, como lembrança malcomportada -um objeto sobre o qual poderia falar com um leve toque de escândalo.
Observei quando o presidente começou a fumar com prazer, sem evidenciar qualquer consciência de clandestinidade.
Coloquei o Partagas no bolso num momento em que Kennedy não estava olhando, decidido a fumá-lo em alguma ocasião especial, e em vez dele acendi um de meus Coronas das ilhas Canárias.
Mas pouco depois comecei a sentir uma espécie de tristeza estranha, fugidia, diante desse presentinho de Kennedy -uma tristeza que eu mesmo não compreendia, embora talvez não tenha passado do mesmo sentimento nostálgico que me levou a escrever, mais tarde, quando me recordei daquele passeio de barco, sobre "todas as diferenças irreconciliáveis, a animosidade feroz que separava Castro de Kennedy.
"De todos os líderes mundiais, o ex-aluno de Harvard e o marxista de Havana eram os mais semelhantes, em termos intelectuais e de temperamento; provavelmente teriam se gostado muito, não tivesse a tempestade da história do século 20 e seu bizarro determinismo os transformado em inimigos irredutíveis."
'Cuide-se'
Vi Kennedy mais uma vez no novembro seguinte, numa festa elegante em Nova York, numa sexta-feira à noite.
Pensei, antes de sair, que talvez o víssemos brevemente por um instante, e nada mais. Mas, ao chegarmos ao jantar, Rose e eu o encontramos ao pé da escada, parecendo momentaneamente perdido e abandonado. Como se interrompido na solidão de um instante, não falava com ninguém e parecia refletir sobre seu charuto.
Apresentava um belo bronzeado de Palm Beach. Ele nos abraçou e soltou uma frase tão evidentemente aduladora que conferiu todo um novo sentido à palavra "lisonja": "Como será que conseguiram trazer você para cá? Já foi difícil me convencerem a vir!"
Perguntou-me como andava o romance e, mais uma vez, começou a falar na questão racial.
Indagou-me se eu conhecia escritores negros e se poderia sugerir nomes de negros para uma reunião na Casa Branca, e assim por diante. Finalmente alguém desviou sua atenção, e Kennedy sumiu na multidão.
Mais tarde, quando saía do jantar, nossos olhares se cruzaram e ele me recomendou, sorrindo: "Cuide-se!" Eram as palavras que eu deveria haver dito a ele, pois exatamente duas semanas mais tarde, em outra sexta-feira, Kennedy caía morto em Dallas. Fumei o Partagas em sua memória.

Tradução Clara Allain

O escritor norte-americano William Styron, 71, nasceu na cidade de Newport News (Virgínia, Costa Leste) e é autor, entre outros, de "A Longa Marcha" (1956) e "A Escolha de Sofia" (1979, dirigido no cinema por Alan J. Pakula)

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