São Paulo, segunda-feira, 20 de janeiro de 1997
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Críticas

JOÃO SAYAD
A CRÍTICA MAIS PODEROSA É MOVIDA POR INVEJA E RIVALIDADE.

A Folha, por exemplo, enche diariamente olhos e ouvidos dos leitores com colunas e editoriais críticos, ácidos, invejosos, despeitados. A janelinha intitulada "Boa Notícia" acaba apenas destacando o caráter crítico do resto, como mancha branca em página negra como piche. A mesma coisa pode se falar da "Veja" em alguns períodos e de outros jornais e colunistas.
Muitas outras coisas, como a política, a arte, a concorrência empresarial, são movidas a inveja e despeito.
Por outro lado, o criticado que senta na cadeira do executivo, público ou privado, é apresentado pelo burocrata ou pelo gerente mais próximo a todas as restrições que limitam sua ação e às práticas de rotina: "Sempre foi feito assim, ou no mundo inteiro é feito assim". "Isto não pode fazer porque é ilegal, aquilo não dá certo porque o mercado não aceita, aquela outra atividade é muito cara e não dá resultados", e assim por diante.
O executivo dificilmente aceita as opiniões do crítico, que está do lado de fora da organização, não precisa de coragem, espírito aventureiro ou vontade forte como quem executa.
Para criticar, basta observar de longe, sem sujar as mãos, o que o criticado está fazendo, a que restrição está obedecendo e qual obstáculo tenta remover.
É fácil. Basta se libertar de frases feitas, de preconceitos, da sabedoria convencional e escrever, com um sorriso nos lábios, a página crítica, propondo o impossível.
Não importa que não seja atitude simpática ou virtuosa, que seja motivada por razões pessoais. O resultado do despeito ou da inveja podem ser virtuosos -mostram restrições cruéis, ainda que racionais do ponto de vista econômico, idéias novas embora inexequíveis, e acirram a indignação contra o que não é justo, honesto ou humano, ainda que seja habitual.
Hoje, pretendo estragar a festa que acompanha o anúncio de cada um dos novos investimentos de montadoras no Brasil, disputados à custa de incentivos fiscais por todos os Estados da Federação. A Renault vai para o Paraná, a Mercedes vem para cá, a Volkswagen para lá, a Honda, acolá. São novos empregos, novas encomendas de ferramentas, cimento, tijolos, e principalmente muitos dólares que entram no país.
Para criticar essa boa notícia e retirá-la da janelinha de "Boas Notícias" da primeira página da Folha, é preciso, antes de mais nada, entender o que é dinheiro.
Dinheiro é um estado de espírito. O Estado brasileiro, por exemplo, está quebrado e não tem dinheiro, pois, desde 1982, com a crise da dívida externa, o mundo financeiro internacional ficou irritado (um estado de espírito).
Depois de emprestar muito dinheiro a diversos países latino-americanos, para bons e maus projetos, os bancos chegaram à conclusão que haviam sido otimistas demais, emprestado demais e queriam todos ao mesmo tempo o seu dinheiro de volta.
O otimismo se transformou em pessimismo, a confiança em desconfiança. O estado de espírito mudou, transformando o Estado investidor em credor falido.
Desde então, tudo que é público ficou sem dinheiro. Dinheiro e estado de espírito positivo passaram a existir apenas para coisas privadas como telefonia celular, redes de fast food, videocassetes, estradas privatizáveis para turistas, transportes públicos rentáveis.
Tudo que é rentável, mas requer longo prazo para maturar, pouco rentável porque produzido para gente pobre, ou muito arriscado ficou sem dinheiro e deixou de ser feito.
Não existir dinheiro para produzir isto ou aquilo não implica que não existam recursos reais -solos não cultivados, mão-de-obra desempregada e conhecimento científico- para produzir. Mas é o dinheiro, o estado de espírito de quem tem dinheiro, que determina o que vai ser produzido e o que não vai ser produzido.
Hoje existe dinheiro para investir em fábricas de automóveis.
A competição por esse dinheiro é feita a partir de incentivos fiscais, ou seja, impostos e arrecadação tributária que poderiam ser gastos em educação, segurança ou mesmo nas estradas e ruas por onde todos esses novos carros pretendem circular.
Se tivéssemos dinheiro para outras coisas, ou seja, se o estado de espírito fosse diferente, estaríamos recebendo empréstimos ou investimentos para transporte urbano em metrôs, trens, ônibus e balsas. Ou para investimentos urbanos e rodoviários.
Assim, quando brindamos com champanhe a decisão de mais uma montadora se instalar no Brasil, estamos brindando a chegada de mais dólares e a redução de receitas dos Estados em coisas importantes; brindamos a criação de empregos que produzirão lucros, salários, congestionamento de trânsito, poluição e um sistema de transporte individual caótico, irracional e incômodo.
Os executivos responderiam que nos dias de hoje não existe alternativa. A função dos críticos, entretanto, é não se conformar, não importa por que motivos íntimos.
Kampai! Salute! Cherrs! Tim-tim! Viva os novos investimentos das montadoras no Brasil! Bem-vindos os dólares, os empregos, a poluição e o congestionamento! Abaixo o metrô e a educação pública, pois para isso não temos boa vontade, estado de espírito ou dinheiro.

E-mail: sayad@tecepe.com.br

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