São Paulo, segunda-feira, 20 de janeiro de 1997
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Reflexões sobre o quinto mandamento

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

Toda segunda-feira, a partir das 7h30, visito os leitos do Hospital da Mulher. E sempre, sem exceção, vejo várias mulheres com câncer de colo uterino em fase terminal.
É uma morte muito sofrida. A pelve é totalmente invadida pelo tumor, intestino e vias urinárias se obstruem e são derivados "contranatura". Todo o constrangimento que isso causa para a paciente, em geral jovem, só não é pior do que as fortíssimas dores que ela sente.
Diante desse quadro, meu sentimento é uma mescla de consternação e revolta, porque essa tragédia, pela qual passam aproximadamente 7.000 mulheres todos os anos no Brasil, é totalmente evitável.
Hoje sabemos -mas não é divulgado para as mulheres- que o câncer de colo uterino é uma doença sexualmente transmissível.
O agente causal mais importante é o vírus do papiloma humano, que algumas vezes invade o código genético das células. Quando isso se soma a situações de baixa imunidade, pode levar de forma muito lenta -mais ou menos dez anos- ao surgimento de um câncer invasivo, depois de passar por modificações teciduais facilmente diagnosticáveis.
Conclusão: sabemos como prevenir, ensinando práticas sexuais seguras. Sabemos como diagnosticar e tratar o vírus causador. E temos muitos anos para isso. Sabemos como diagnosticar as formas precursoras ao aparecimento do câncer.
E mais: tudo isso a um custo muito baixo. Educação para a saúde é barata, o vírus é tratado com pomadas e cauterizações, e o diagnóstico precoce se faz com o teste de Papanicolaou.
Em que pese todo conhecimento, apenas 5% das mulheres brasileiras têm sido atendidas por algum dos procedimentos possíveis, e 7.000 mulheres continuam morrendo todos os anos dessa doença que, em qualquer país civilizado, já não é causa relevante de morte.
Eu disse país civilizado, não rico. O descaso em relação ao câncer de colo ocasiona um número de mortes 50 vezes maior do que o ocorrido em Caruaru e Santa Genoveva. Mortes evitáveis, predominantemente de mulheres jovens, que se repetem, invariavelmente, todos os anos.
No meu entender, trata-se de um assassinato em massa, que decorre não da falta de dinheiro, mas da ausência do Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher, desativado nos poucos Estados onde existia e jamais implantado em escala nacional, apesar de ter nascido no Brasil e ser, hoje, reconhecido como modelo pela Organização Mundial de Saúde e pela Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia.
Esse modelo foi aceito, também, em conferências internacionais, como a do Cairo -sobre população- e a de Pequim -sobre a mulher.
Infelizmente, não há qualquer possibilidade de sobrevivência para modelos semelhantes num sistema de saúde centralizado e caótico como o nosso, onde o lucro e os interesses políticos frequentemente predominam sobre a saúde.
Para mudar esse quadro são necessários seriedade e competência. É fundamental, ainda, aproximar o conhecimento científico da definição estratégica da administração programática.
Saúde é questão complexa. A falta de profissionalismo pode significar milhares de mortes. Por tudo isso, às segundas-feiras, quando encerro a visita, sigo com indignação para Brasília, disposto a lutar pela implantação de um sistema de saúde honesto, eficiente, viável e humano. Saio indignado e volto frustrado.

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