São Paulo, quinta-feira, 23 de janeiro de 1997
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O secreto objeto do desejo

MOACYR SCLIAR

Ela sabia que o marido era adepto do vício solitário. E não se queixava. Em primeiro lugar, porque, conforme dizia, melhor vício solitário do que vício em companhia, tipo suruba, essas coisas repulsivas. Em segundo lugar, considerava-se uma mulher compreensiva, capaz de entender o marido, homem reservado, introspectivo, torturado por conflitos e por sonhos não realizados -era natural que buscasse no imaginário uma compensação para suas frustrações. De modo que, quando ele se fechava no banheiro ou mesmo no quarto, não a incomodava. Ele que ficasse entregue às suas fantasias.
Fantasias, tudo bem; mas uma coisa a perturbava. Qual era o objeto do desejo do marido? Quem povoava suas fantasias? Mulher ou homem? Se mulher, que tipo de mulher? Um dia, na praia -a praia favorece esse tipo de aproximação, as pessoas estão quase desnudas mesmo- indagou-lhe a respeito. E o fez cautelosamente, com medo de uma reação adversa.
Para sua surpresa, o marido mostrou-se receptivo. Até sorriu: alegro-me que você tenha perguntado, disse. E começou a falar da mulher que alimentava seus sonhos. Ela é loira, disse, usa um vestido preto, sapatos de salto muito alto, pinta as unhas de vermelho e usa maquiagem.
A esposa não disse nada. Estava profundamente chocada. Totalmente diferente dela, a mulher que o marido descrevia. Era morena, usava vestidos de cores alegres (detesto preto, dizia, é coisa para quem está de luto), usava sapatos de salto baixo, nunca fazia as unhas, nunca se maquiava. A questão era: estava o marido dando-lhe um recado? Estava falando do tipo que preferia?
Acabou decidindo que sim. E resolveu transformar-se na dama imaginária. Gastou nisso um dia inteiro. De manhã foi à loja, escolheu um vestido preto muito justo, muito decotado. Depois foi ao cabeleireiro, de onde saiu loira. Dali à manicure. E quando chegou em casa -caminhando com dificuldade, por causa dos saltos muito altos- o marido, que estava sentado lendo jornal, pôs-se de pé, atônito. Você é outra, disse. Eu sou a mulher de seus sonhos, respondeu ela.
Naquela noite fizeram amor. Nada diferente do habitual. Se alguma coisa mudara nele, não dava para perceber. Pior: nos dias que se seguiram, ele voltou a se trancar, ora no quarto, ora no banheiro.
Ela não precisou perguntar. Sabia quem agora era o secreto objeto do desejo. Uma mulher morena, vestindo cores alegres, sapatos de salto baixo, sem maquiagem, sem verniz nas unhas. A mulher que ela tentaria, toda a vida, ser. Sem jamais conseguir.

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