São Paulo, quinta-feira, 23 de janeiro de 1997
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A ética e a reeleição

GERARDO MELLO MOURÃO

Quando ministro da Fazenda, interpelado sobre certa providência que adotara e cuja moralidade era questionada pela opinião pública, o sr. Delfim Netto provocou um escândalo, ao defender-se com uma resposta antológica: "O Estado é aético". O então poderoso ministro sabia o que estava dizendo. Seu entendimento é absolutamente correto, diante do mais moderno conceito de Estado.
O "stato etico" é uma expressão fascista. O fascismo, como lembra Andrew Hewitt ("Fascist Modernism", Stanford University), é uma práxis do texto do "Príncipe", como o leninismo é, por sua vez, um subtexto também de Maquiavel. Ambos criaram um Estado que podia tudo e sabia tudo, fundado sobre o círculo de ferro de uma ideologia fora da qual tudo seria aético.
No Estado Democrático, a ética está aberta ao ecletismo das circunstâncias. A coisa pública não é problema da ética. O Estado é, portanto, aético em seu gerenciamento. E, como instrumento do Estado, para ser democrático e eficiente, o governo é também aético. A ética será apenas um atributo da pessoa civil dos governantes. Mas isso é outra história.
É e não é. Pois ela está na ordem do dia da tempestade desencadeada pelo debate da reeleição. Enganam-se os que condenam a reeleição em nome da ética. A ética não tem nada a ver com isso. O presidente não macula, de forma alguma, a limpidez de seu comportamento ético ao tentar derrubar a cláusula constitucional da não-reeleição -quase uma cláusula pétrea em nossas cartas republicanas.
Não é por aí que a reeleição pode ser condenada. Há outras superstições jurídicas na Constituição, que podem e devem ser revogadas. Mas isso também é outra história.
Talvez, no caso da emenda em debate, o governo tenha cometido um equívoco tático. Nunca um gesto menos limpo. Se o governo dispusesse de um ministro da Justiça menos medíocre, teria convocado juristas e políticos para a elaboração de um projeto respeitável e convincente. Mas desta tarefa não seria e não foi capaz o confuso doutor Jobim, esse Ulpiano dos Pampas, que serviria para a Secretaria de Justiça do governicho do acaciano e afoito repórter Britto, mas nunca para o gabinete de um estadista como FHC.
Com um projeto responsável e bem estruturado, outros ventos talvez enfunassem as velas da reeleição. Tal como está, a medida surgiu como um parto de montanha. Foi proposta por um obscuro deputado, descalçada de razões jurídicas e políticas substanciais, às quais o bem-intencionado parlamentar talvez não tenha acesso.
O projeto contou logo com a paternidade putativa, não se sabe se a priori ou a posteriori, do desinibido ministro Serjão, cujo forte também não são as letras jurídicas e políticas e as letras em geral. Seu trânsito no Congresso é, geralmente, temido como o de um elefante em casa de louças. Falta-lhe o bom convívio com os palmos de terra mais limpos do Congresso.
O presidente FHC passou a batata quente da emenda, oriunda do mais baixo clero da representação parlamentar e do menos tático de seus ministros, às mãos hábeis e competentes de Luiz Carlos Santos e Luís Eduardo, que trouxe para o pleito seus talentos pessoais e o cacife paterno.
O entrevero inicial da batalha foi perdido pelo governo. A convenção do PMDB, uma engenharia de cinco meses de trabalho e obstinação de seu presidente, Paes de Andrade, foi o Sarajevo das declarações de hostilidades entre as próprias forças governistas.
Haverá outras batalhas em torno da emenda. Outros complicadores vão surgir com a escolha dos presidentes da Câmara e do Senado. Na Câmara, pode não ser tranquila a eleição de Michel Temer, despontando como desfecho incerto um confronto de segundo turno com Prisco Viana, cujas possibilidades aumentam com o espólio que poderá receber da expressiva votação que se espera do candidato avulso do chamado baixo clero.
Qualquer resultado será bom, até porque o sr. Prisco Viana está entre os deputados mais dignos, mais sérios e mais respeitados da Câmara, aderido exemplarmente aos deveres de seu mandato por mais de 30 anos.
No Senado, quem cair cairá de pé, como diz o senador Iris Rezende. Sem o entremês de uma candidatura avulsa, os dois postulantes pertencem ao mais alto clero da casa e da política nacional. O sr. Iris Rezende é um homem público da mais alta qualidade, com uma história de honra na luta contra a ditadura militar, no governo de seu Estado, no ministério e no Senado da República.
O sr. Antonio Carlos, por sua vez, é um político emblemático da "realpolitik" do país, com títulos de brilhante e eficiente governador em seu Estado e vigorosa presença no Congresso.
Mas o insucesso de um ou de outro pode ser um complicador para o governo e para o projeto de reeleição, no qual o presidente não foi derrotado, embora o grande vencedor do primeiro choque seja, inequivocamente, o obstinado presidente do PMDB.

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