São Paulo, sexta-feira, 24 de janeiro de 1997
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Educar para o futuro. Qual?

HENRIQUE FLEMING

O tempo passa. O tempo voa, diz a propaganda, desta vez, sem dúvida, com razão. A tarefa da educação é preparar os jovens para esse mundo mutante e volante. Como? O que manterá o seu valor daqui a, digamos, 30 anos?
A humanidade nunca se encontrou numa situação como esta, em que as mudanças se processam tão rapidamente e de maneira tão inovadora. Onde poderemos buscar ajuda, nessa sociedade sem oráculos?
No apogeu de seu império, no século passado, a Inglaterra defrontou-se com uma situação que guarda uma semelhança, digamos, estrutural, com esta que estamos vivendo. Mas não era no tempo e sim no espaço. A imensa extensão do império britânico, "onde o sol nunca se punha", obrigava os ingleses a conviver com, e administrar, inúmeras e variadíssimas culturas. Tão variadas que seria impossível preparar administradores para todas elas.
Ora, os ingleses são, sabidamente, homens práticos, e, por isso, sabem que a burocracia deve ser exercida por pessoas de grande inteligência e sabedoria. Não encararam jamais os cargos da administração pública como sinecuras. São, por isso, cuidadosíssimos na preparação de seus administradores: nos quadros da Companhia das Índias, por exemplo, encontramos nomes como Stuart Mill, principal filósofo inglês da época, e, mais tarde, Keynes.
Convém dar uma olhada nos métodos que utilizavam. Temos, afortunadamente, um guia profundo e claro: Ortega y Gasset. Em "Una Interpretación de la Historia Universal", diz o filósofo espanhol que os ingleses, diante de tanta variedade e imprevisibilidade, fizeram isto: em cada geração, escolheram os jovens mais dotados e os confinaram em Oxford para que ali se dedicassem a aprender grego e a praticar esportes como o fizeram os gregos.
À procura de uma explicação para esse "descomunal paradoxo", Ortega chegou a estas conclusões, que traduzo livremente.
"Os educadores, sobretudo quando vão inspirados por um afã de praticidade, pensam que o que se deve fazer com os jovens é prepará-los do modo mais concreto possível para a vida tal qual ela é, deixando de lado todas as disciplinas e modos que parecem ornamentais e supérfluos. Mas dá-se que a vida histórica muda constantemente. A história é permanente inquietude e mutação. De modo que, se se educa o rapaz preparando-o concretamente para vida tal qual é hoje, quando se torna adulto descobre que a vida tem outra figura e, quanto mais praticamente preparado estivesse para a anterior, mais desajustado fica para a que tem de viver e em que tem de atuar."
Não cheguemos a tanto. Estamos longe de Oxford. Mas não fiquemos em tão pouco. Recentemente, uma reportagem na TV chamou a atenção para uma escola pública do Harlem, bairro negro de Nova York, que, fechada em consequência de uma onda incontrolável de vandalismo por parte dos próprios estudantes, pôde transformar-se em uma escola-modelo quando, reformando radicalmente seu currículo, ofereceu aos alunos o que poderia haver de melhor para cidadãos de primeira classe: estudos clássicos centrados, é quase inacreditável, em um curso de latim! Do Harlem, já não estamos tão longe!
Programas desse tipo existem nos EUA há algumas décadas, em várias universidades. Ganhou destaque o da Universidade de Chicago, idealizado pelo seu reitor, Robert M. Hutchins, e ministrado sob a responsabilidade do filósofo Mortimer J. Adler.
Ecos dos benefícios desse curso se encontram nos mais variados lugares. Uma das melhores análises críticas a respeito está no famoso livro de Robert Pirsig, "Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas", na realidade um sério estudo sobre a educação escrito com mão muito leve, selecionado pela revista "Time" como um dos melhores livros da década de 70.
O curso de Adler teve seu alcance muito ampliado pela publicação da coleção "Great Books", da Encyclopaedia Britannica. Mas fazia parte do espírito do curso que os autores deveriam ser lidos sem o amparo de comentaristas, de maneira que nenhuma edição especial era necessária: os livros estavam todos à disposição, em inúmeras edições, e em todas as bibliotecas. O curso de Chicago compreendia vasta coleção de autores, de Homero a Freud.
Era um curso universitário. Aqui, estou pensando no que vem antes.
As leituras básicas para a nossa civilização necessariamente incluem Homero, o teatro grego, Heródoto, Tucídides, Plutarco, algum Platão. São deliciosas, particularmente Homero, que é inigualável. Só o fato de os professores terem de ler essas obras já causaria impacto notável em nossa educação.
Quem achar que exagero, leia o relato do jornalista e crítico de cinema americano David Denby, que resolveu, 30 anos depois de formado, voltar a Columbia para fazer o curso de leitura de clássicos. O livro se chama "Great Books" (Simon & Schuster) e é uma das sensações do momento.
Um "pacote" de traduções desses clássicos poderia estar à disposição na Internet. Estão, nos EUA. E são livros baratos. Não há direitos autorais. Os autores, diferentemente de suas idéias, morreram há milhares de anos.

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