São Paulo, sexta-feira, 24 de janeiro de 1997
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Coréia do Sul: mera coincidência?

VICENTE PAULO DA SILVA

"O governo coreano confirma seu compromisso de respeitar os valores fundamentais, sobretudo os ideais de pluralismo democrático e de respeito aos direitos humanos, incluindo os relativos aos direitos como liberdade de sindicalização e negociação coletiva." Palavras com as quais o governo sul-coreano expressou seu compromisso de revisar a legislação trabalhista de caráter antidemocrático vigente.
Foi um dos obstáculos que precisava superar antes que a Coréia do Sul fosse admitida no clube dos países desenvolvidos, a OCDE, em dezembro.
Menos de um mês depois, os sete membros da executiva da central sindical KCTU se refugiam na catedral de Seul para evitar sua prisão, enquanto outras centenas de milhares de trabalhadores ficam de braços cruzados. O governo de Kim Young-sam interrompera as negociações com empresários e trabalhadores e decretara uma legislação ainda pior que a existente.
A nova lei facilita demissões em massa, permite contratos temporários de trabalho também em caso de greve e estende a jornada diária para 10 horas, até um máximo de 56 horas por semana, sem pagamento de extras.
A CUT mantém intercâmbio há vários anos com as centrais daquele país, que nos mantêm informados sobre os motivos e o desenvolvimento das mobilizações. Já nos manifestamos em frente ao consulado da Coréia do Sul para entregar uma carta de repúdio à nova legislação e à repressão que os trabalhadores vêm sofrendo.
Como outras centrais sindicais em todo o mundo, a CUT entende a importância dessa greve em um mundo globalizado. A Coréia do Sul transformou-se em exemplo de economia bem-sucedida voltada para a exportação, o que foi usado para contrapor o chamado modelo de "substituição às importações" que caracterizava a industrialização na América Latina.
Os trabalhadores coreanos sofreram muito no processo de industrialização que vem sendo implementado desde o início dos anos 60 sob um regime de ditadura militar. Revoltaram-se várias vezes contra a exploração, que se manifestou, entre outras formas, em extensas jornadas de trabalho e altos índices de acidentes. E até 1987 eles sempre foram massacrados. Só então uma surpreendente mobilização de massa, liderada por metalúrgicos em greve e estudantes, derrubou os militares e pôde exigir eleições diretas.
Simultaneamente, grandes campanhas salariais conseguiram aumentar o nível de vida. A partir dessas mobilizações surgiu, em 1990, a central sindical KCTU, até hoje mantida na ilegalidade. É proibido a uma central ou federação apoiar um sindicato de base.
Desde sua criação, centenas de sindicalistas foram presos. Quando a greve começou, 23 trabalhadores já estavam na prisão, acusados de violar a legislação anti-sindical. A exigência de modificar a legislação trabalhista, uma das principais bandeiras de luta da KCTU, acabou conquistando até a adesão da central governamental -FKTU.
Mas o governo não quis avançar no processo de democratização e alega que a globalização exige facilidades de demissão e contratos precários de trabalho. Se, durante a ditadura, não havia espaço para democratização das relações de trabalho porque o bolo tinha que crescer primeiro, hoje os trabalhadores ouvem que a globalização não a permite: a Coréia do Sul está perdendo competitividade, para países como Tailândia e Indonésia, e não atinge a produtividade de países como a Alemanha.
Foi essa visão que fez o governo alemão, no ano passado, rebaixar o seguro-desemprego, levando centenas de milhares de trabalhadores à greve.
É o mesmo argumento para que aceitemos os altos níveis de desemprego e que o governo FHC utilizou para justificar o cancelamento de seu compromisso com a convenção 158 da OIT, que condiciona minimamente a demissão em massa. A mesma visão que prendeu Mukhtar Pakpahan, presidente da SBSI (central sindical da Indonésia), acusado de ter organizado greves nas zonas de "livre" exportação. A mesma visão que prevalece na Argentina e provocou três greves gerais, no ano passado, contra a precarização e pelo emprego.
Os trabalhadores sul-coreanos entraram novamente em greve para demonstrar sua determinação de manter as mobilizações até que se revogue a legislação e seja reaberto o processo de negociação, sendo que consideram inegociáveis os princípios de liberdade de organização e negociação sindical.
O que está em jogo na Coréia do Sul é o conceito de modernização. Os trabalhadores estão cansados de ver seus direitos negados em nome da globalização. O governo brasileiro segue o mesmo caminho do coreano: é a globalização. Pautemo-nos pelo exemplo dos trabalhadores coreanos!

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