São Paulo, sábado, 25 de janeiro de 1997
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Coincidências e desencontros

RUBENS RICUPERO

Em conversa inesquecível que tive uma vez com Jorge Luis Borges, ele falou-me longamente de sua admiração pelo Kipling poeta, mais ainda do que pelo autor de histórias maravilhosas como Kim, admiravelmente traduzido por Monteiro Lobato ou dos contos sobre a Índia. Já completamente cego e perto da morte que o colheria pouco depois em Genebra, onde está enterrado no mesmo cemitério de Calvino, Borges me disse que ninguém superou Kipling na expressão da dor física do câncer que poria fim à sua vida.
Caricaturizado como apologista do imperialismo, o criador do "Livro da Jungla" foi, na realidade, muito mais sutil e antecipou de certa forma a tese hoje tão em voga do conflito das civilizações, de Samuel Huntington. São de Kipling, com efeito, os versos famosos: "East is East and West is West, and never the twain shall meet" ("o Leste é o Leste e o Oeste é o Oeste, e jamais os dois gêmeos hão de se encontrar").
Aplicado ao conflito ideológico Leste-Oeste, a profecia foi correta. Já no caso da suposta incompatibilidade entre os valores culturais asiáticos e os ocidentais em relação a democracia, direitos fundamentais e organização econômica, a conclusão é duvidosa.
Um exemplo pertinente é o das greves coreanas que inauguraram este ano, como as greves francesas haviam fechado 1995, com a mesma mensagem: a da ressurgência de um movimento sindical galvanizado pela resistência a mudanças no mercado do trabalho ou da previdência impostas em nome da globalização e dos imperativos de competitividade.
Conforme observou o escritor americano William Pfaff, existe em ambos os casos um fundo comum: a revolta contra a idéia de que os custos, reais ou fictícios, da globalização devem ser pagos exclusivamente pelos trabalhadores e não divididos com os proprietários, altos executivos ou investidores. Estes, ao contrário, nunca se locupletaram tanto. Os ganhos com a bolha especulativa da bolsa são tão artificiais que o próprio Alan Greenspan, presidente do Fed, denunciou a "exuberância irracional" dos mercados.
Deve haver algo de profundamente podre em matéria de senso moral num mundo onde o estúdio Walt Disney paga para afastar um diretor fracassado quase US$ 50 milhões, e exige, por outro lado, que os trabalhadores se resignem a serem postos no olho da rua sem uma indenização razoável.
Tudo isso se faz em nome de uma doutrina segundo a qual as leis da economia não permitiriam mexer nos fabulosos ganhos dos altos executivos, proporção cada vez maior dos lucros das empresas. Ainda mais intocáveis seriam os dividendos ou benefícios especulativos dos detentores do capital, agrupados sob o nome eufemístico e coletivo de "mercados financeiros", misteriosos, nervosos e ditatoriais, único poder diante do qual as democracias se confessam incapazes de exercer qualquer controle eficaz.
Pfaff tem razão ao dizer que no fundo é completamente arbitrário pretender que o retorno do capital seja mais importante, do ponto de vista social ou comunitário, do que ter uma força de trabalho dignamente remunerada e com um mínimo de estabilidade de emprego.
Suspeito que, em futuro não muito distante, essas explicações pseudocientíficas de um determinismo econômico contra o qual o homem nada pode nos soarão tão disparatadas e absurdas como as apologias "racionais" da escravidão ou do capitalismo selvagem do começo do século 19.
Aliás, a idéia de que a melhoria da produtividade e o aumento da competitividade devem ser obtidos à custa da remuneração ou da estabilidade dos trabalhadores é um claro retrocesso ao século passado, aos tempos em que Charles Dickens descrevia a miséria e a esqualidez dos bairros operários ingleses e, com a mesma matéria-prima, Karl Marx elaborava a teoria que iria revolucionar o nosso século.
Insistir em mergulhar nesse túnel do tempo é correr o risco de reacender conflitos que pareciam superados, de aprofundar desigualdades e lutas de classe, destruindo a coesão e a solidariedade indispensáveis a uma comunidade democrática.
A dolorosa transição atual, como a da Primeira Revolução Industrial, exige soluções mais equilibradas e humanas do que o simplismo globalizador. É o que reclamam os grevistas franceses, alemães ou coreanos. O irônico é que na Europa os governos ameaçam as populações com o "bicho papão" da concorrência dos orientais, supostamente imunizados pelo confucionismo ou pelo estoicismo inato contra as seduções do consumismo ou simplesmente de uma vida melhor. As greves coreanas, da mesma forma que as lutas democráticas em outros países orientais, põem a nu o exagero desses argumentos e mostram que na Ásia, como na Europa ou na América, as pessoas anseiam por liberdade, democracia, direito à dignidade, ao trabalho e a um salário digno, que os direitos humanos e a liberdade são valores de apelo universal. Pois, como lembrava o governador inglês de Hong Kong, um golpe de cassetete dói tanto na cabeça de um britânico como na de um chinês.

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