São Paulo, segunda-feira, 27 de janeiro de 1997
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Definir capital italiana é tarefa de poetas

ULISSES INFANTE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Poetas são poetas porque sabem como capturar nas palavras aqueles fatos da alma que nós, mortais enfadonhos, conseguimos até sentir -mas não colocar em forma de frase ou verso feliz.
Roma é, essencialmente, um fato da alma -e é a alma que caminha a pé pelos becos e praças da cidade, deixando-se tocaiar pelo Antigo, pelo Ontem, que, sorrateiro, entoca-se nas esquinas, nos prédios, nas fontes, nas ruínas, nas escadarias, nas igrejas, em todo canto, de onde espalha sua luz e seu perfume sutilmente irresistíveis.
Drummond escreveu que "Deus golpeia à traição". Roma, que de Deus e de deuses sempre está e esteve próxima, faz exatamente a mesma coisa.
Chegamos à cidade cheios de expectativas. E os carros e ônibus, que relutam em respeitar a faixa de pedestres, e as malditas motonetas, que definitivamente não a respeitam, nos fazem pensar que caímos num engodo. A poluição visível aumenta essa sensação.
Depois do primeiro café magistralmente bem-feito e saboroso, é que se sente uma primeira comichão: os olhos começam a perder-se pelos detalhes das fachadas, pelas curvas das estátuas, pelos arcos das construções.
Logo se está querendo saber como viviam os que aqui viveram ao longo dos séculos superpostos, como se somaram essas camadas de matéria humana agora estratificadas em pedras e edifícios.
Nas fontes vemos a água antiga -que lava nosso espírito já ligeiramente atraiçoado e o contamina ainda mais. É nas praças que o sol, as flores, o estarmos sentados silenciosos nos golpeiam definitivamente: no espaço aberto, muitas vezes geometricamente perfeito, sucumbimos, indefesos prisioneiros da cidade.
A partir desse momento, o amor a Roma é irremediavelmente uma parte da nossa alma. E, já no Brasil, num qualquer momento, felizes e melancólicos -saudosos-, esse amor, traiçoeiro como todos, nos inundará de Roma, de Ontem.
É Cecília Meireles que, com voz firme de poeta, nos revela tudo em seu "Adeus a Roma": "A cidade estrangeira, dorida de guerras,/altiva em seus brunos muros e palácios/dava sombra de séculos à minha alma. (...) Mas a vida tomava-me como o vento faz às nuvens./Impelia-me para longe, mudava o meu lugar no mundo...".

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