São Paulo, sexta-feira, 31 de janeiro de 1997
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Como passar um corcunda no ralador de coco

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Mesmo sem cultivar sentimentos cívicos ou patrióticos, não posso ignorar o duríssimo vinagre que atravessamos com o governo com-reeleição e os sem-terra querendo coisas complicadas que demandam discussões, barganhas e tiros. Em hora tão grave, abdico de minha comodidade física e espiritual e venho lembrar o único remédio que pode nos salvar.
Trata-se da Grande Mágica das Favas, receita que se encontra em antigos textos de bruxaria do século 14 e cuja compilação, segundo laboriosa pesquisa de técnicos de Oxford, deve-se ao lendário Abraham Zaccuto, famoso bruxo de Alexandria que tantas fez, tantas e tamanhas, que acabou queimado em praça pública. Suas cinzas foram jogadas no Nilo.
A Grande Mágica das Favas é simples em seus ingredientes, mas complexa em seu modo de aviar. Os ingredientes são: um marreco branco, duas cebolas colhidas à meia-noite, uma virgem (é possível que se encontrem algumas, ainda), uma bacia de cobre também virgem, ou seja, que nunca tenha sido usada, dois agapantos, cinco dúzias de aranhas, outras tantas dúzias de favas, uma coruja defumada, um corcunda e um guarda municipal.
Pode parecer difícil juntar tudo isso, mas nem tanto. Todos os ingredientes devem ser passados num ralador de coco, menos a bacia e a virgem, que deve ser servida na integridade de sua pureza.
A pasta -ou o caldo- que resultar disso tudo deve permanecer três luas no sereno -e se houver ventania, raios, trovões e coriscos, maior será o efeito. Depois, é colocar a virgem nua dentro da bacia e cobri-la com a pasta ou o caldo.
Garantem os entendidos que, ao fim da sétima lua, a virgem se transformará em gigantescas favas, as quais, contadas, seriam distribuídas nos campos e cidades. Em consequência, haverá abundância nas colheitas e prosperidade nos negócios.
Rezam as lendas que Pepino, o Grosso, estava arruinado, teve de vender seus exércitos, suas esquadras, sua mãe e duas irmãs (uma delas caolha) para pagar seu déficit interno.
Fez a mágica a preceito, recuperou todos os seus bens, menos a irmã caolha -que aliás não lhe fazia falta.
Coriolano, o Horrendo, ia perdendo o reino por falta de dinheiro em suas burras. Fez a mágica e não só encheu as ditas burras como conquistou outros reinos, menos o do céu, pois morreu ímpio e excomungado.
Acredito que os exemplos citados são bastantes para atestar a eficiência das favas e de sua grande mágica. Ofereço-a como contribuição pessoal ao desarmamento dos espíritos dentro e fora do Congresso Nacional. Ao baixo custo da operação e à sua comprovada eficácia, soma-se o caráter apartidário da mágica, que remeterá a nação ao universo do Maravilhoso -no qual, aliás, costuma se dar muitíssimo bem.
Somente um pequeno problema: é o item que manda passar o corcunda no ralador de coco. Para maior eficácia da mágica, não se deve embebedar o corcunda, a fim de lhe amaciar a carne e torná-lo mais conformado -tal como se procede com os perus na época do Natal.
O corcunda terá de ser passado no ralador a frio, ralado integralmente, no uso e gozo de suas faculdades físicas e mentais, que soem ser grandes. A energia que ela despenderá ao ser ralado é ingrediente indispensável à eficiência da Grande Mágica.
Conta-se que o abade Hildebrando, mais tarde Duque de Borratesta, bastardo do rei da Gasgônia e que era conhecido como Oscar, o Desditoso, tinha necessidade de arranjar 1 milhão de ducados de ouro para salvar a integridade de seu reino e a virgindade de sua filha mais nova.
Tentou a Grande Mágica das Favas, mas se condoeu do corcunda que lhe arranjaram, um bom sujeito que se chamava Capistrano. Mandou que lhe dessem uma extravagante beberagem para atordoá-lo.
O corcunda Capistrano foi ralado, mas não soltou um único berro; algumas testemunhas chegaram a declarar que ele ria na hora de ser ralado, ou porque sentia terríveis cócegas ou porque era realmente um abnegado. Evidente que a mágica, assim procedida, não somente deixou de ser eficaz como logo se revelou contraproducente.
Oscar, o Desditoso, ficou mais desditoso ainda: perdeu todas as suas terras, sua filha mais nova deixou de ser virgem e se tornou a prostituta mais escrachada das tabernas do reino.
E mais: para ficar livre de tais e tamanhas desditas, ele tentou se atirar da torre mais alta de seu castelo em ruínas. Oscar, o Desditoso, teve a desdita suplementar de levar um tombo e rolar pelas escadas. Ficou corcunda.
Anos depois, durante uma peste que assolava o reino, o povo decidiu aviar a receita da Grande Mágica das Favas. Precisava de um corcunda e o único à disposição do populacho era Oscar, o Desditoso.
Foi ralado como manda a receita, emitiu pavorosos gritos e terríveis blasfêmias no ato. Em compensação, nunca se ouviu dizer que a Grande Mágica das Favas tenha produzido tão benéficos e maravilhosos efeitos.

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