São Paulo, sábado, 4 de outubro de 1997
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Doença e debilidade física dão ao papa caráter de mártir, diz estudioso

CLÁUDIA TREVISAN
ENVIADA ESPECIAL AO RIO

Para Gilberto Velho, da UFRJ, João Paulo 2º desempenha seu papel com dramaticidade

A doença e a debilidade física dão ao papa João Paulo 2º um caráter de mártir, que o aproxima ainda mais dos valores básicos do cristianismo e aumenta a simbologia mística que o cerca.
A opinião é de Gilberto Velho, 52, professor titular de antropologia social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. "Não há dúvida de que esse papa, o João Paulo, desempenha esse papel de papa com uma intensidade, uma competência, uma dramaticidade muito grandes."
Para Velho, a visita do papa ao Brasil tem um caráter polêmico, especialmente pela discussão de temas como o aborto, o divórcio e a família. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida à Folha.
*
Folha - Qual é o significado de um símbolo como o papa hoje?
Gilberto Velho - Nós precisamos estabelecer uma coisa preliminarmente: estamos falando de religião, em desejo de transcendência, em crença no sobrenatural, em misticismo. Não estamos falando em organizações laicas.
Segundo ponto: é uma instituição de 2.000 anos, que no século 4º passou à corresponder à religião oficial. E isso no Império Romano. A religião católica está ligada à idéia de império. São várias coisas que se somam para compor essa simbologia poderosa.
Folha - E qual é o papel do papa na manutenção dessa simbologia?
Velho - O papa é a figura central, que tem um poder simbólico extraordinário, porque ele é o sucessor de são Pedro e o representante de Deus na Terra. Para quem está dentro desse universo de crenças, essa figura é importantíssima.
Folha - Como o papa João Paulo 2º desempenha esse papel?
Velho - Não há dúvida de que esse papa desempenha esse papel de papa com uma intensidade, uma competência, uma dramaticidade muito grandes.
Ele tem o que se chama comumente de carisma. É uma figura que transmite muito toda a dimensão mística da Igreja Católica. Até essa situação de sofrimento físico dele sustenta isso.
Folha - O sr. acredita que essa condição dá transcendência maior ainda ao cargo?
Velho - Exatamente. Qual é a história dele? Ele assume como uma grande novidade, um papa não italiano, polonês, num momento importante de transição em que a Polônia está se mobilizando, com todo um movimento contra o domínio da União Soviética.
Depois, ele é alvo de um atentado e é gravemente ferido. Sobrevive, faz não sei quantas operações, há um sofrimento físico muito grande e existe a idéia de martírio.
Ele aparece como uma figura que até nesse nível reproduz um valor muito importante, que é a dimensão do martírio, do sofrimento.
Folha - Mas ele continua a viajar e usar muito bem os seus dotes de bom comunicador...
Velho - É a missão dele. É a idéia de apostolado.
Folha - O sr. acredita que ele exerce esse apostolado de forma mais intensa que os papas que o antecederam?
Velho - Não sei se é mais intenso, mas certamente aparece de modo mais flagrante. Ele tem uma presença física muito dramática, até pelo fato dele ter sido ator.
Não estou dizendo que ele está representando. Não, ele realmente vive desse modo. Ele e o que o cerca. Ele carrega com ele uma aura.
Folha - Como o sr. explica as manifestações de parte da população brasileira nas visitas do papa ao país?
Velho - Por tudo isso que eu falei. Independentemente de as pessoas concordarem com as coisas que ele diz, ele realmente consegue criar através dessa aura um clima de grande emoção.
Ele encarna um sistema de crenças poderoso e que tem ligação com o sobrenatural.
Folha - Qual a importância do papa atual sob o aspecto político?
Velho - É imensa. Já mencionei o papel que ele teve na derrubada da União Soviética. Não estou dizendo que ele é o responsável pela queda da União Soviética, o que seria uma trivialidade, mas certamente ele teve um papel ativo na Polônia, de apoio ao movimento Solidariedade, e em geral na Europa Oriental contra a União Soviética, que era atéia e anti-religiosa, sob o ponto de vista da igreja.
Folha - Esse é um papa que se mostrou muito enfático na defesa da ortodoxia da igreja, com a condenação de métodos anticoncepcionais e do divórcio, por exemplo. Esse discurso está cada vez mais distante do comportamento cotidiano dos católicos. Como a igreja vai resolver esse impasse?
Velho - A igreja é uma instituição ampla, enorme, complexa. Presta-se muita atenção nas pessoas que estão contra essas posições. Mas há muita gente a favor.
Folha - Uma pesquisa Datafolha mostrou que 90% dos católicos praticantes apóiam o uso da camisinha como método contraceptivo, o que é condenado pelo papa.
Velho - Eu não estou falando só do Brasil. Estou falando no mundo, em geral. De qualquer forma, há muita gente que concorda com o papa. E há um núcleo de católicos mais ortodoxos que defende isso. É um núcleo estratégico, que sustenta com algumas coisas o funcionamento da Igreja Católica.
Folha - Qual seria a função da defesa dessa ortodoxia?
Velhos - Manter a identidade do catolicismo e da Igreja Católica. Assim que eu entendo o ponto de vista deles. Tem de distinguir a Igreja Católica das outras coisas, dos outros movimentos, das outras seitas, das outras religiões.
Por outro lado, o mundo mudou muito, com a comunicação, a Internet, a globalização. A igreja deixou de ter a última palavra nas questões morais.
Os católicos não estão só dentro da igreja. As pessoas estão expostas a outras agências, a outras instituições, a outros universos. As pessoas têm um compromisso com a idéia de felicidade pessoal.
Folha - Mesmo não concordando com a posição oficial, muitas pessoas permanecem na igreja. Como se explica isso?
Velho - Elas não são talvez tão esmagadas como seriam em outras épocas porque elas têm outros grupos de referência. Esse tipo de contato permite que elas tenham aprovação social que lhes dá mais folga para não serem trituradas pela rejeição da igreja.
Folha - Qual o significado dessa visita do papa ao Brasil?
Velho - Existe uma dimensão polêmica nessa visita do papa que não havia em 1980. Em 1980, havia um grande consenso, fora alguns setores radicais do regime militar, havia grande consenso em relação ao que o papa dizia.
Você tem hoje um papa da polêmica. Quando ele fala em reforma agrária, é polêmico. Mesmo pessoas progressistas podem achar que ele não deve estar falando em reforma agrária da posição em que ele está.
Falar em questão social, esplêndido! Mas, por outro lado, tem de tomar cuidado quando fala com um governo democrático.
E é extremamente polêmico em relação a essa questão dos direitos da minoria, do aborto, da família.

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