São Paulo, sábado, 4 de outubro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Marta Suplicy defende 'controle' da TV

COSETTE ALVES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Deputada critica posição da igreja sobre aborto, diz que instituição 'não escuta as mulheres' e chama FHC de 'frouxo'

Em 1980, a sexóloga e psicóloga Marta Suplicy foi a primeira a falar abertamente sobre sexo na TV brasileira. Hoje, deputada federal pelo PT-SP, Marta acha que é preciso "controlar a televisão".
Considera que há muitos programas "nocivos" que não podem continuar indo ao ar. Deixa claro que não vê aí uma atitude de censura, mas uma forma de "protesto". Marta comandou por seis anos, até 1986, quadro sobre comportamento sexual no programa "TV Mulher", da Rede Globo.
No Congresso Nacional, tem marcado sua atuação pela defesa de projetos polêmicos. Trabalha pela regulamentação da lei que permite o aborto, em caso de estupro ou risco de vida para a mãe, no sistema público de saúde. Critica a Igreja Católica, que "há muito tempo não escuta as mulheres" e que estaria em descompasso com os anseios atuais.
Não conseguiu, até agora, que fosse aprovado o projeto que assegura direito de união aos homossexuais. De qualquer forma, ela o reapresenta a cada três meses na tentativa de aprová-lo.
A chamada Lei das Cotas, de sua iniciativa e já aprovada, obriga os partidos a destinar 20% de suas vagas a mulheres -índice que foi aumentado para 30% com a aprovação da nova lei eleitoral.
Aos 52 anos e preparando-se para a campanha à reeleição, a deputada dá seu apoio a ex-companheira de partido Luiza Erundina, ("uma das maiores lideranças de esquerda"), defende o PT ("é ele que é o protagonista do novo no Brasil e não esta velharia oligárquica do PSDB") e critica a atuação de Fernando Henrique Cardoso como presidente da República ("ele é muito frouxo").
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
*
Folha - Qual a sua opinião sobre a saída de Luiza Erundina do PT?
Marta Suplicy - Compartilho com Luiza Erundina alguns pontos de vista referentes às dificuldades de alguns setores do PT em se abrir para alianças ou para a nova realidade do mundo. Ela levou três anos para aprender a conversar com parlamentares do PT, com forças oposicionistas e a fazer alianças. Vai ver ela cansou de enfrentar críticas. A base do PT cobra para valer. O que não acontece com outros partidos nos quais os filiados não discutem em profundidade. Ela é uma das das maiores lideranças de esquerda e a mais forte liderança feminina. Acho que ainda trabalharemos juntas.
Folha - Como a sra. explica os desentendimentos internos no PT?
Marta - O PT é um partido que tem como hábito discutir todas as propostas. Muito mais que os outros partidos. A base exige coerência dos seus representantes no Executivo porque participou do programa que os elegeram. Tudo o que acontece no PT é avaliado como mais uma crise destrutiva, fruto da "luta interna". O PT vai ter que enfrentar uma situação, que tem a ver com sua origem ligada aos movimentos sindicais de categorias fortes, que hoje quase que põe uma camisa de força no PT e ao mesmo tempo é a base principal petista. É uma operação fantástica e os críticos não se dão conta deste momento delicado e histórico.
Folha - Os críticos dizem que o PT é protagonista do velho, que resiste às mudanças...
Marta - O protagonista do novo no Brasil é o PT e não essa velharia oligárquica do PSDB. O PT ainda é o partido com mais propostas interessantes para governar.
Folha - Como a sra. avalia hoje o panorama político?
Marta - Com a possibilidade da entrada de Ciro Gomes e Itamar Franco na disputa, a campanha presidencial ficou muito mais interessante. O fascinante da política é isso: as pessoas articulam, conchavam, planejam e o resultado muitas vezes surpreende.
A entrada dos dois levará a eleição ao segundo turno, o que o presidente queria evitar. Acho que aí ele não ganha. Mas quem irá disputar? Itamar vai tirar muitos votos do presidente, assim como o Ciro. A filiação de Ciro ao PPS, partido que pode continuar aliado ao PSDB no seu Estado de origem, enfraquece a candidatura de Ciro, em relação à sua primeira alternativa que era o PSB. De qualquer maneira, a sua candidatura é praticamente fato consumado, como muito provavelmente a do PMDB, com Itamar, Sarney ou Requião.
Eu estava com muitas dúvidas se o Lula deveria ser o candidato, pois o índice de rejeição dele e do PT ainda é grande. Mas, com mais adversários no páreo, aumenta a possibilidade de comparação e de desmistificação do governo FH. Estou começando a acreditar que dá para mudar essa imagem de dinossauro que querem nos impingir. De qualquer maneira, o Lula é, de longe, a pessoa com mais condições de fazer as transformações que o país precisa. Ou alguém acha que é o Ciro?
Folha - Qual a sua opinião sobre o governo Fernando Henrique Cardoso?
Marta - Algumas posições que ele toma são boas. Por exemplo, a posição em relação à Alca (Área de Livre Comércio das Américas) e ao Mercosul. É por aí mesmo. O Mercosul é o futuro para nós e é impensável não colocar o máximo de esforço em relação à Alca. Ele tem sido firme como eu gostaria que fosse. Mas suas decisões são lentas, medrosas. Ele é muito frouxo como presidente.
Folha - A sra. não o está acusando de excesso de prudência?
Marta - Não chamo de prudência. Acho o presidente frouxo. Ele não assume as grandes questões de transformação social no Brasil para valer. A miséria, por exemplo. Essa história de frango e dentadura é muito pouco como resposta às inquietações e à disparidade de renda que ainda prevalece no país.
Ele não assume um projeto de renda da cidadania como o do Suplicy (Eduardo, senador pelo PT, e marido da deputada), que provocaria uma transformação radical. Nem faz a reforma agrária para valer no ritmo que os desassistidos exigem. Ele só recebeu o MST quando pesquisa mostrou o apoio popular ao movimento.
Ele foi lerdo para se pronunciar sobre o aborto, assim como em relação à esterilização. Isso não é prudência, é querer ficar bem com todo mundo. Mas essa enrolação já foi percebida tanto pelos deputados como pelas mulheres. Onde estão as nomeações de mulheres para o primeiro escalão da República, para o Judiciário?
Folha - A sra. não vê nada de bom no governo FHC?
Marta - A estabilidade dos preços é indiscutivelmente a melhor conquista do governo. Não criar alternativas para que isso se torne um preço eventualmente maior do que a felicidade da estabilidade é o maior ônus do governo.
Folha - Qual a sua opinião sobre o movimento dos sem-terra?
Marta - Acho a coisa mais importante que aconteceu no Brasil na última década. É muito organizado e não ocupa terras que sejam produtivas. Eles esticam a corda o máximo que podem para exigir uma ação do governo. Por isso assustam parte da população. Mas o que eles têm mostrado ao país é que, se não agem dessa forma, as coisas não caminham.
Folha - A que a sra. atribui o aumento da violência no Brasil?
Marta - A queixa em delegacia com relação a adolescentes delinquentes aumentou 70%. Acho que é falta de expectativas e alternativas misturada a um incitamento televisivo. E também é por conta de uma sociedade que está muito sem rumo. É uma sociedade sem valor, sem moral, uma sociedade com os valores em decadência. E nós não reagimos a nada disso.
Folha - Dá para a sra. contar sobre a insatisfação do público com alguns programas de televisão?
Marta - Eu recebi cartas de eleitores que pediam providências. Também uma das televisões já tinha me procurado, dizendo que o Ministério da Justiça estava querendo que as emissoras organizassem um grupo para pensar formas de controlar a televisão sem que o ministério precisasse interferir -no sentido de colocar censura.
Quando eu percebi que a coisa tinha morrido, pensei que como deputada poderia fazer uma comissão especial, audiências públicas, colocar a população discutindo. A sociedade civil tem que se organizar para controlar a televisão. A sociedade não tem peso de organização para dizer: eu não compro este produto, porque anunciou no programa "x" que é um programa (produto) que faz mal a minha criança. É um programa que me faz mal, que diz respeito a minha cidadania como mulher.
Folha - Quem faz parte desse grupo da sociedade civil?
Marta - Quinze pessoas se reúnem há três meses para pensar sobre o tema. O Renato Janine (filósofo), a Maria Rita Kehl (psicanalista), entre outros, fazem parte do grupo. Estamos tentando viabilizar uma reflexão sobre diferentes programas. É preciso diferenciar o que é ruim do que é nocivo. Porque o que é ruim pode ficar na televisão e o que é nocivo tem que sair. Por exemplo, esse programa do Gugu Liberato, um menino de 4 anos dançando a dança do Tchan, isso é nocivo, não pode ficar. Programas como o do Silvio Santos, que coloca uma caixa de plástico com cobras e notas de cem reais e uma mulher pondo a mão dentro da caixa e ele incentivando a mulher e a platéia uivando, é um desrespeito à mulher, à sexualidade da mulher, porque aquela cobra não está lá de graça. É a exploração da miséria.
Folha - Mas isso não é uma forma de censura, um retrocesso?
Marta - Isso é protesto. Tivemos tanto medo de fazer isso que a gente não consegue. Eu vejo, por exemplo, quando vou fazer uma palestra numa escola e toco nesse tema. Os pais ficam surpresos e falam: bom, eu tinha vontade de fazer isso, mas será que é certo? É aí que você vê o resquício da ditadura. Claro que é certo. Você tem que exercer os seus direitos.
Ninguém controla a televisão, não se muda de canal. Alguém mais sofisticado argumenta: em Shakespeare você vê o cunhado com a mãe, são coisas violentíssimas e despudoradas. Você não pode comparar com Shakespeare, que tem o desenvolvimento de uma trama com caracteres de personalidades aprofundados, que vivem um conflito. Na televisão, você vê a banalização superficial da morte e do sexo e a exploração da miséria direta. Principalmente com relação ao gênero de programa. São extremamente machistas.
Folha - Qual a situação atual do projeto de lei que regulamenta o aborto na saúde pública?
Marta - O Brasil é um país que está entre os 25% mais rígidos em relação à legislação sobre o aborto. É ridículo estarmos discutindo a regulamentação de uma lei de 1940, que não amplia em nada os direitos das mulheres, simplesmente torna obrigatório que se atenda o direito ao aborto já legalizado, que é somente em dois casos: de risco de vida da mãe e gravidez resultante de estupro. Atualmente são seis cidades que fazem esse atendimento. Quem for estuprada e ficar grávida no Piauí ou Paraná não poderá exercer seu direito legal. A mulher que avalia que não tem condição de ter um filho tem que ter a possibilidade de exercer essa escolha sem risco de vida. Não podemos esquecer que no Brasil são praticados 2 milhões e 400 mil abortos por ano, com sequelas de morte e esterilidade para milhares de mulheres, além de ser o segundo gasto de ginecologia do país.
Quanto ao aborto, temos que entender que a legislação é feita para todos os brasileiros e que estes pertencem a muitas religiões e também ateus. As pesquisas da Folha e do "Jornal do Brasil" mostram que a maioria dos católicos praticantes é a favor da regulamentação da lei do aborto já existente e, parcela expressiva, a favor da ampliação. Foi interessante notar que, em se tratando de comportamento e vida privada, o católico age de acordo com sua consciência por perceber que a igreja está em descompasso com os anseios atuais. As pessoas não querem mais ser tuteladas quanto às suas necessidades de foro íntimo. Principalmente as mulheres. A igreja há muito tempo não escuta as mulheres. Aliás, será que já escutou algum dia?
Folha - E a Lei das Cotas?
Marta - Fiquei impressionada como todos os jornais esmiuçaram a lei eleitoral e pouquíssimos tocaram na ampliação das cotas mínimas para as candidaturas das mulheres: ampliadas de 25% em 98 para 30% no ano 2000. Os partidos começaram a se dar conta da dificuldade e a pensar como estimular candidaturas. Espero que a mídia debata esse tema sem preconceito.
Folha - Como está indo o projeto de união civil entre pessoas do mesmo sexo?
Marta - Aos poucos ele está sendo compreendido como o que realmente é: um contrato entre duas pessoas do mesmo sexo, eventualmente até da avó com a neta. O projeto foi feito pensando nas minorias homossexuais que terão alguns direitos de cidadania que hoje não usufruem: previdência, nacionalidade para o parceiro, sistema de saúde conjunto.
Tenho andado o Brasil todo explicando o projeto e na hora que o povo entende, apóia. O senso de justiça e de direitos é bastante desenvolvido no cidadão brasileiro. Não é à toa que as três centrais sindicais apóiam o projeto. Até religiosos, quando entendem que é uma questão de direitos dos homossexuais, sensibilizam-se.
Folha - Qual a avaliação que a sra. faz de seu trabalho como deputada?
Marta - Como é que eu vou falar que acho meu trabalho ótimo sem parecer que eu sou pretensiosa? Mas eu digo isso mesmo. Avalio bem o meu trabalho. Fico surpresa quando companheiros ou amigos dizem: eu nunca imaginei que você fosse uma deputada tão presente com projetos tão interessantes.
Folha - Notou mudanças importantes em si mesma nestes três anos?
Marta - A minha disposição para fazer e pensar política aumentou assim como o interesse em participar ativamente nos movimentos sociais e demandas do PT. Eu achava as reuniões partidárias muito chatas e agora gosto de ir. Folha - A sra. é a favor da manutenção dos privilégios para parlamentares?
Marta - Sou contra a manutenção dos privilégios dos parlamentares, assim como para magistrados. A questão da aposentadoria está ficando um "frankenstein". Não dá para justificar esses privilégios quando a maior parte das verbas da Previdência vai para o menor número de pessoas, e pessoas que pagaram o mais alto teto a vida inteira para garantir uma velhice tranquila estão sendo aposentadas com teto de R$ 1.200,00.
Tem sido importante para o Brasil que alguém com o cargo de presidente do STF, como o ministro Celso de Mello, se pronuncie de forma tão clara e destemida sobre tabus (aborto), preconceitos (direitos homossexuais) e privilégios. Até que enfim surgiu um ilustre que enfrenta o corporativismo e as igrejas que insistem em legislar.

Texto Anterior: TCU investiga publicidade do Plano Real e reeleição
Próximo Texto: Há menos de um mês no PSB, Erundina gera primeira crise
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.