São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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Católicos de ocasião

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Pela segunda vez, em pouco mais de um mês, os meios de comunicação vêem-se às voltas com o sentimentalismo e a hipocrisia para relatar fatos de apelo popular.
Primeiro foi a morte da princesa Diana, que revelou entre nós novas e insuspeitadas vocações éticas (como diz Gilberto Felisberto Vasconcellos, no livro "Collor, a Cocaína do Povo", fala-se muito em ética no Brasil, como se houvesse um Aristóteles em cada esquina). Agora é a visita do papa.
"Emoção", "alertas sociais", "atenção aos negros e aos povos indígenas", "palavras de paz e justiça", "união da família"... e lá vai o jornalismo enredando-se no jogo de cena do catolicismo de fachada brasileiro.
Políticos que frequentam pais de santo vestem a auréola, instituições temporais endossam a fé e a classe média de sessão espírita gruda na TV: todos se dispõem, pelo sim, pelo não, a fazer parte da festa que, na realidade, é de uma minoria de católicos realmente dignos do nome.
Uma ou outra voz, é verdade, tenta extrair da visita alguma reflexão, mas tudo, no final das contas, parece fadado a acabar em hóstia: prevalecem o show, o derramamento, as lágrimas e bandeirolas.
Certamente o Vaticano e o papa não são meros adereços já desprovidos de função, como ocorre com a outrora poderosíssima família real britânica -embora paralelismos possam ser estabelecidos entre a monarquia e o papado.
É tal a dissintonia entre certas postulações da igreja e os comportamentos práticos, que parece ter-se estabelecido um pacto de faz-de-conta para tudo funcionar.
A política faz de conta que respeita e vai pautar-se pelo discurso do papa, jornalistas fazem de conta que estão profundamente sensibilizados com a visita, católicos de ocasião fazem de conta que tudo o que o sumo sacerdote diz é a palavra de Deus, embora prefiram não praticá-la.
Não cabe à mídia e às instituições afrontar católicos ou outros religiosos. Mas, uma vez laicas, poderiam assumir posições menos oportunistas -como fez, diga-se, dona Ruth Cardoso, ao defender a aplicação da lei do aborto.
Por temor ou conveniência, entretanto, prefere-se jogar o jogo. Ou, o que é pior, tratar o pontífice como "café com leite".
Aceita-se passivamente que o papa fale em nome dos índios sem mencionar o trabalho da igreja na dissolução das culturas indígenas, que fale dos negros sem lembrar a convivência do catolicismo com a escravidão, que condene o homossexualismo esquecendo-se da prática homossexual entre o próprio clero.
Tudo muito ético e transparente.

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