São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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O salto mortal da utopia

ROBERTO CAMPOS

"No lugar do antigo isolamento e da autarquia das regiões e nações, estabelece-se um intercâmbio universal, uma interdependência universal das nações." - Karl Marx, no "Manifesto Comunista" (1848)

Todo mundo gosta de segurança e tranquilidade. Todo mundo deseja sempre alguma coisa a mais, e ninguém quer arriscar-se a perder coisa alguma. Isso parece tão óbvio que o leitor talvez se pergunte se é o caso de dizê-lo. Mas é, porque algumas das discussões mais complicadas que ocorrem nas sociedades contemporâneas, e em nosso próprio país, têm a ver exatamente com as enormes distâncias entre os nossos desejos materiais e os meios de satisfazê-los.
A década de 80 marcou uma inflexão decisiva no rumo do mundo. Ocorreram fenômenos como a liberalização econômica internacional, o fim da Guerra Fria e do equilíbrio do terror atômico e a implosão dos regimes socialistas. Com isso, generalizaram-se as exigências de competitividade e eficiência, e passou a encolher-se proporcionalmente o duplo papel de provedor universal de bem-estar e de gerente-em-chefe da economia que o Estado vinha aos poucos assumindo desde a grande depressão dos anos 30.
Mas mudanças dessa ordem não se fazem sem deslocamentos, sem que alguns ganhem e outros percam -ou, pelo menos, que alguns pensem que estão ganhando, e outros, que estão perdendo. Haver maior pressão competitiva e maior demanda de eficiência significa que aqueles que, por qualquer motivo, não consigam acompanhar o ritmo das coisas logo percebam que estão ficando para trás, e que outros estão levando vantagem na corrida.
Ninguém gosta dessa sensação, e muitos haverá que, compreensivelmente, se sintam injustiçados, ou vítimas do destino. Quem, por exemplo, perde um emprego ou tem de fechar uma empresa por causa do aumento da concorrência custa a se conformar, por mais que até entenda e aceite a regra do jogo. E esses deslocamentos estão ocorrendo em escala muito grande.
Em sociedades mais habituadas à luta competitiva no mercado, como os Estados Unidos, o aumento da produtividade tem muito mais criado empregos do que destruído, ao passo que, na Europa, onde os hábitos corporativos e as pesadas dimensões do "Estado-babá" geraram estruturas pouco flexíveis, menos adaptáveis aos câmbios do contexto, o desemprego é alto (de 10% a 12%, o dobro do americano). E o progresso tecnológico vem se retardando.
Mas esses problemas, embora iluminados um tanto dramaticamente pela rapidez das mudanças recentes, não são novos. Ocorreram em larga escala no auge da revolução industrial do século passado. E ninguém os descreveu melhor do que Karl Marx. No "Manifesto Comunista" de 1848, ele zomba das "mágoas dos reacionários", que não entendiam a revolução produtiva trazida pela burguesia. Nossas esquerdas neoburras que não leram (ou tresleram) o "Manifesto Comunista" certamente se surpreenderão em saber que a mais entusiástica apologia da globalização "burguesa" (que hoje chamaríamos de globalização capitalista) foi feita um século e meio atrás pelo profeta barbudo, cuja abundância capilar não provocou penúria mental, ao contrário do que acontece com os "petelhos" tupiniquins...
O capitalismo pode ter tido um custo penoso para aqueles apanhados nas engrenagens das transformações da economia, e talvez haja gente que até hoje não se conforme com elas. Gandhi, por exemplo, tecia e cozinhava, ele próprio, e pregava a simplicidade da vida em aldeias auto-suficientes, as "ashram" (parece, aliás, que não se dava conta de que o experimento estava sendo pago, em parte, por ingleses excêntricos...).
Estamos sendo sacudidos, aqui no Brasil, por uma onda de mudanças econômicas, que nos pegaram em cheio depois de vivermos muitos anos de costas para o mundo, no gozo corporativo de oligopólios bem protegidos, sob a sombra clientelística de um Estado irresponsavelmente frondoso e cada vez mais incompetente, misturando inflação, palavras de ordem nacionalistas e faz-de-conta "social".
Pouco a pouco, fomos ficando à beira de inviabilidade diante das exigências competitivas cada vez maiores do sistema internacional. Ao contrário de países como a Coréia do Sul ou Cingapura, não avançamos senão mediocremente em educação, em preparação da mão-de-obra, em absorção de tecnologia. E, inevitavelmente, o custo da adaptação teria de ir aumentando cada vez mais com o passar do tempo. Câmbios que teriam sido feitos com relativa facilidade ao longo das duas últimas décadas estão sendo agora comprimidos, martelados em poucos anos, meses, talvez, em alguns casos. Estamos pagando uma bruta conta acumulada de insensatez ideológica e coisas piores. Literalmente, a conta pendurada pelo "Estado a que chegamos"...
Seria ingênuo apresentar as grandes transformações da globalização competitiva como se fossem divertidas festas de aniversário da garotada. A coisa é para valer, e alguns sofrem sem culpa. A vida não é necessariamente justa e alegre. O vale de lágrimas da Bíblia não é apenas força de expressão. E não se pode negar o quanto pode ser opressiva a incerteza do dia de amanhã e o valor que, para a grande maioria das pessoas, representa a segurança material.
Daí, porém, a rosnar "contra a globalização e o neoliberalismo", como se anda voltando a ouvir nos subúrbios intelectuais das esquerdas, vai um salto muito grande -na verdade, o salto mortal da utopia. O mundo pode ser melhorado, talvez todos os dias um pouco, mas não é uma brincadeira de criança, em que se possam mudar as regras como se queira.
Nem, tampouco, dá para sair zangado do campo, levando a bola. O preço de tentá-lo seria mais ou menos o que pagou a Albânia, ou que está pagando, com a fome, a Coréia do Norte. É certo que nossos tataravós não conheceram a sociedade de consumo e viveram sem televisão, automóveis, geladeiras, eletricidade, até sem água corrente. Viveram, em média, menos de metade do que nós, hoje, mas viveram. Mas, para nós, voltar a esse estado de coisas e ficar fora do universo econômico do nosso tempo simplesmente não dá. Não é uma escolha praticável fecharmos a porta ao mundo lá fora.
Todas as tentativas para construir um mundo ideal usando o poder do Estado fracassaram em ineficiência e opressão. Nem precisamos lembrar a "degenerescência burocrática" dos falecidos regimes socialistas. O chamado Estado do bem-estar social, essa babá coletiva que se ofereceu para cuidar da vida de todo mundo, em todas as partes tropeça nos mesmos problemas: gasta demais e mal os dinheiros do público, cria dependência e parasitismo, e seu peso cada vez maior abafa a capacidade produtiva da economia. A resposta certa passa pela eficiência máxima ao desafio competitivo.
É claro, porém, que as sociedades atuais são complexas demais para deixarem de ter seguridade social, serviços de saúde, educação e toda a variedade de outros serviços que o público cada vez mais demanda. A supressão desses serviços é um fantasma ideológico inventado por mentes fora de fase. O problema real é o de juntar "eficiência" e "transparência". Ou seja, é preciso que o público saiba o que custa cada benefício, quem paga e quem recebe e quanto. Devemos acreditar que, quanto mais esclarecido o espírito do público, mais solidário e generoso se mostrará. Mas, em última análise, é a sua livre opção -que vai depender dos seus valores e da sua informação- que levantará o edifício nunca acabado de um mundo melhor. Se ficarmos meros súditos de um déspota coletivo, a serviço de burocratas e políticos interessados antes de mais nada em si mesmos, só podemos esperar o passado, não o futuro.

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