São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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Só português barra a literatura da bola

MATINAS SUZUKI JR.
DO CONSELHO EDITORIAL

Há um boom internacional da literatura sobre futebol.
Esse boom ainda não sacudiu a língua portuguesa (embora, no Brasil, tenha aumentado significativamente a edição de livros sobre futebol), mas já está nas prateleiras dos leitores que compram livros em inglês -com sotaque britânico- e espanhol -em diversos sotaques.
Na Grã-Bretanha, o futebol eclodiu como um dos itens obrigatórios da "geração trainspotting" (você reparou que eles falam muito de futebol?).
Por lá, essa redescoberta do futebol pelos escritores jovens já foi definida como "new football writing".
Um dos marcos desse movimento foi o grande sucesso de vendas do livro "Fever Pitch" (numa tradução livre, "Paixão pelo Lance"), escrito por Nick Hornby, hoje um autor cult, e lançado em 1992.
O livro de Hornby é uma espécie de diário feito a partir das suas memórias dos jogos que assistiu do time do Arsenal.
As partidas são literalmente partidas, ponto do início de recordações da sua vida por intermédio de jogos de futebol.
"Nesse ponto, eu sinto que eu devo defender a acuracidade da minha memória, e talvez a de todos os torcedores de futebol. Eu nunca mantive um diário sobre o futebol, e eu esqueci centenas e centenas do jogos inteiramente; mas eu medi minha vida nas lembranças do Arsenal e qualquer evento significativo tem uma sombra do futebol", escreve ele, em um depoimento que coloca o futebol no núcleo central da sua vida, como experiência decisiva para a sua literatura.
Talvez nenhum outro autor tenha ido tão longe na sua relação com esse esporte.
E talvez isso explique a paixão que o livro despertou entre os britânicos (quem me apresentou o livro de Hornby, há alguns anos atrás, foi um garotinho londrino que estava vidrado por ele).
Um dos aspectos da literatura inglesa sobre o futebol é que ela explora bastante a relação do torcedor com um time.
Ela privilegia mais a paixão, o significado da entrega a um outro, a alienação no processo de torcer, a metamorfose, mais do que o futebol propriamente.
Bem, os britânicos são famosos pelo hooliganismo, por essa entrega além dos limites ao ato de torcer.
Nesse sentido, pode-se dizer que o pai dessa nova geração de escritores britânicos que se dedicaram à paixão dos torcedores pelo futebol é o jornalista americano Bill Bufford, com o seu livro sobre os hooligans "Among the Thugs" ("Entre os Vândalos", lançado no Brasil pela Companhia das Letras, em 1992).
Em um artigo para "The Independent on Sunday", em outubro de 1993, o próprio Nick Hornby confirma essa tendência: "A coisa mais notável sobre o futebol não é o jogo nele mesmo, o qual é pobre, coisa angustiante, mas a maneira como ele é consumido".
Bem, você sempre poderá argumentar que, sendo obrigado a assistir ao Campeonato Inglês, talvez a paixão das torcidas seja mesmo mais interessante dos que as partidas de futebol.
Mas esse argumento não responde a uma pergunta (por que não sendo tão brilhantemente jogado, ele desperta tanto amor?).
Nem reduz o interesse sociológico e poético de ver a maneira como os habitantes do Reino Unido se entregam à vertiginosa experiência do futebol.
O sucesso de "Fever Pitch" levou Hornby a organizar a coletânea "My Favourite Year"("Meu Ano Favorito"), juntamente com um fanzine mensal sobre futebol chamado "When Saturday Comes" ("Quando Chega o Sábado"; lembrar que a principal rodada na Inglaterra ocorre aos sábados, e não aos domingos), dedicados aos torcedores do Liverpool e do Arsenal.
Boa parte do nome dos escritores que aparecem em "My Favourite Year" são tão conhecidos do público brasileiro quanto a imensa e entediantes lista de bandas de rock que existem hoje espalhadas pelo mundo.
A maioria deles encontrou o seu ano favorito no futebol por causa de times que você certamente nunca ouviu falar ou, se ouviu sim (como é o caso da República da Irlanda, tema de Roddy Doyle, cujo livro "The Commitments" transformou-se no filme de sucesso de Alan Parker; o outro livro de Doyle, "The Snaper", virou filme de Stephen Frears), certamente não foi porque eles viraram propriamente legendas do futebol.
A antologia da nova literatura do futebol inclui, entre outros, Harry Ritchie, editor da prestigiadíssima seção literária do "The Sunday Times", que escreve sobre a temporada 92/93 do Raith Roverws, o jornalista da bíblia musical de nós todos durante muito tempo, "New Musical Express", Don Watson, que rememora a temporada do Leeds United de 74/75, Chris Pierson, o professor de política na Universidade de Stirling que narra a temporada 71/72 do St. Albans City, e o próprio Hornby, que relembra a série, para a inveja do Íbis, de 31 partidas sem vitória do Cambridge United, na segunda divisão inglesa da temporada de 83/84.
Em 1994, o jornalista Simon Kupfer, após ter viajado por nove meses entre 22 países lança "Football Against the Enemy" ("Futebol contra o Inimigo"), tentando entender as relações entre a paixão futebolística e o poder político.
Mas o seu livro não entra exatamente na zona de atuação da cultura "trainspotting" inglesa dos anos 90.
Dois outros livros que entram para esse universo são "Everywhere We Go" ("Qualquer Lugar que a Gente Vá"), dos irmãos Dougi e Eddy Brimson, lançado no ano passado, e o novo cult "The Football Factory" ("A Fábrica do Futebol"), de John King, na virada do ano.
O primeiro é uma espécie de reportagem escrita do ponto de vista de dois irmãos carecas frequentadores das violência das torcidas e é bastante útil para quem se interessa pelos assunto, pois eles dão uma detalhada descrição do que pensam que dá certo e do que não dá certo no combate à violência dos frequentadores de estádios de futebol.
O livro de John King foi definido como "uma crônica de uma tribo perdida -o branco, anglo-saxão, heterossexual que está de saco cheio de ser chamado de merda". Simpático, não?
É difícil para nós entendermos o tipo de relação que os ingleses têm com o futebol -e nós também conhecemos muito pouco do futebol inglês.
Daí a razão da dificuldade de uma compreensão mais clara desses livros que mostram que o neo-hooliganismo e a cultura "trainspotting" são farinhas do mesmo saco.
Espanhol
Quer dizer: ele está mais solto dentro de uma estética, voa mais dentro de um universo ficcional e poético que tenta uma metafísica do jogo do que fica colado a uma narrativa da experiência do acompanhamento de partidas por parte de seres que estão desencontrados na vida e se apegam ao futebol como se apegam à bebida e às drogas (em outras palavras, a literatura de língua espanhola sobre o futebol procura os céus; a britânica nasce nos infernos. Ambas são verdadeiras).
O grande marco dessa tendência foi o lançamento na Espanha de dois bons livros nos últimos anos.
O primeiro, a antologia "Cuentos de Fútbol" ("Contos de Futebol"), foi organizada pelo ex-jogador argentino e até pouco tempo técnico do Valencia Jorge Valdano -que, no tempo de atacante da seleção argentina, era chamado de o "jogador filósofo".
Valdano misturou escritores e jornalistas latino-americanos e espanhóis para fazer um volume no qual se destacam os contos de Augusto Roa Bastos ("O Craque": "Goyo Luna, ponta-esquerda do Sol da América, era, aos 25 anos, um mirrado depósito de perfeições ocultas") e de Mário Benedetti ("O Gramado": "o espectador veterano sabe que, quando o futebol se converteu em pé-na-bola e o ball virou pelota e o dribbling em finta e o centre-half en volante e o cntre-forward em alma em pena, tudo veio abaixo, e essa é a explicação para que muitos levem ao estádio o seu rádio-transistor, já que pelo menos os que relatam a partida põem um pouco de emoção nas estupendas jogadas que imaginam").
O outro livro é uma espécie de compilação da literatura sobre o futebol feita pelo jornalista Julián García Candau, "Épica e Lírica do Futebol".
Nele, há alguns achados como o belíssimo poema de Rafael Alberti sobre o goleiro Platko, que ele chamou de "osso vermelho da Hungria".
No ano passado, na Argentina, a revista literária "La Maga" havia realizado uma bela edição especial sobre o futebol.
Agora, acaba de sair a antologia "Contos de Futebol Argentino", inspirada na de Valdano e organizada pelo escritor e humorista Roberto Fontanarrosa.
A maior parte dos escritores escolhidos pro Fontanarrosa não é conhecida no Brasil.
Mas ele teve o cuidado bastante interessante de introduzir a narrativa de três mulheres (Inés Fernández Moreno, Liliana Heker e Luisa Valenzuela) no universo literário do futebol.
Mas a grande contribuição dessa antologia foi o resgate de um conto da dupla de geniais falsificadores literários: Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges.
Com eles, a literatura sobre futebol chega ao ponto máximo.
Resta a inevitável pergunta: quando o esse boom chegará ao bom futebol brasileiro?

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